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Herdeiros do Caos - O lamento do príncipe capítulo 13

 Há sempre novas formas de sentir dor.

 

Quando consigo voltar a enxergar estou novamente na frente do Zuhiel, mas minhas roupas estão parcialmente chamuscadas e eu posso sentir minha pele se regenerando das queimaduras que sofri naquele único instante.

— Mas que porra foi isso?!

— Você precisa ser mais específico — ele responde, cínico. — Está falando da parte onde quase se matou? Ou da pequena demonstração de poder de um arcanjo que nem sequer estava lá pessoalmente? Ou talvez do fato de você ter posto tudo a perder... pelo que mesmo? Sentimentalismo?

— Pra começar, achei que você estivesse me ocultando! Não deveria ter tido anjo nenhum por lá!

— Como Zadiel te informou, mas você não deve ter prestado atenção o bastante, ele investigou o seu passado. Criar rastreadores em lugares importantes para você não é uma tarefa difícil. E só funcionaram porque você foi estupido o bastante para retornar aquela cabana.

— Então você ouviu a conversa. Deve ter ignorado a parte onde eu decidi lutar contra os anjos.

 

— Não que isso vá nos ajudar muito até que aprenda a controlar seus poderes.

— Então o que estamos esperando? Hora de tirar essa tatuagem.

— Precisaremos do poder da lua para isso, até lá, quero mostrar o progresso que fiz com seus amigos nesse meio tempo.

— Você andou ensinando coisas a eles sem eu estar por perto?! — isso me deixa mais bravo do que ele ter me espionado.

— Não o bastante. E você pode guardar suas queixas para depois que quebrar todos os selos e cumprir a sua parte.

Nós saímos do quarto dele, andando dessa vez, acho que até ele se cansa de se teleportar para tudo que é lado. Mais uma vez damos voltas e voltas pelos corredores. mas de repente, subimos uma escada que eu nem sabia que existia até então. Nós chegamos a um tipo de dojo de artes marciais. Meus amigos estão todos aqui, parecem estar vestidos para o Halloween.

Vallery voltou a usar sua jaqueta e blusa de caveira. Harvey agora está com um casaco preto com um capuz esverdeado e em suas mãos tem luvas com caveiras desenhadas nas costas. Duncan está vestindo uma blusa preta de mangas compridas com ombreiras feitas de crânios. E o Z estava com um colete branco sem mangas por cima de uma blusa branca com o desenho de um gafanhoto.  Acabo reparando que em cada traje havia o símbolo do respectivo cavaleiro em suas costas. 

— Dy, você não vai acreditar! Eu posso fazer essa roupa aparecer a hora que eu quiser! — Z corre até mim, empolgado. — Olha só!

Ele só precisa se concentrar e sua roupa volta a ser o que estava usando na praia, depois ele toca a tatuagem e elas mudam novamente.

— Isso é... bem legal — tento parecer animado. — E o que mais ele ensinou?

— Ele também deu essas meias para a gente — Vallery puxa o cós da calça para mostrar a meia listrada cheia de símbolos.

— Meias?

— Elas vão escondê-los da visão dos anjos quando estiverem longe dessa ilha — Zuhiel explica. — Como pôde ver, eles estão atentos a nossa presença e vão tentar impedir que você quebre os selos.

— Meias listradas? É sério? Não tinha um amuleto ou algo mais... místico?

— Não vou desperdiçar algo que vocês possam perder — ele então vai até a prateleira na parede e pega mais um par. — Essas são para você.

— E então, como essas fantasias vão ajudá-los a lutar contra os anjos?

— As marcas permitem que eles canalizem uma fração do poder dos verdadeiros cavaleiros, que podem afetar tanto seres físicos quanto espirituais. No entanto, a quantidade de poder que pode ser canalizado é proporcional a capacidade dos portadores. Sendo eles meros humanos, não espere que possam derrotar anjos sozinhos. Serão apenas um apoio adequado para você.

— Isso só me faz questionar porque dar essas marcas para eles. Eu deveria ser o bastante... — eu sei que estou batendo na mesma tecla, mas não quero ver mais ninguém   morrendo por minha causa.

— Muito legal a aula — Vallery se intromete. — Mas como nós usamos esses poderes? Como eu fiz aquilo na delegacia?

— Vocês já deveriam saber disso a essa altura, mas cada cavaleiro representa um aspecto do fim: A peste, montada no cavalo branco. A fome, montada sobre o cavalo negro. A guerra, montada no cavalo vermelho. E por fim, a morte, montada no cavalo esverdeado. Suas marcas possuem as cores respectivas e é a esses poderes que vocês devem recorrer.

— Por que eu sou a peste? — Z pergunta. — Eu queria ser a guerra, ou a morte! — não gosto nada da animação que ele usa para dizer “morte”.

— E... o que eu vou fa-fazer? De-deixar to-todo mundo com fome?

Harvey é o único que não parece interessado no seu poder, não posso culpá-lo. Ele também já viu a morte de perto. 

— Se contentem com o poder que tem — Zuhiel responde, sem paciência. — E, se aprenderem a tirar proveito dele, descobrirão que os cavaleiros não são temidos à toa;

— Tá, mas quando é que você vai nos ensinar a fazer as coisas legais? — Vallery insiste.

— Antes de aprenderem a lutar com poderes mágicos, é melhor que saibam lutar sem eles — Zuhiel estala os dedos e o dojo se enche de prateleiras com armas de todos os tipos. — A magia não vai fazer todo o trabalho por vocês. E ela será inútil se seus corpos não se moverem a altura.

— Uau! — Z corre até uma das prateleiras. — Eu quero essa! — ele tenta pegar uma espada, mas seus braços descem na mesma hora. — É tão pesada...

— Tem o peso certo — eu digo, no mesmo tom que Gerard usava comigo. — Não é um brinquedo. Ela precisa perfurar o seu oponente, passar pelo seu escudo e armadura se preciso.

Eu pego a espada e desfiro alguns cortes no ar apenas para testá-la. Os garotos me olham atentamente, o que só me motiva a demonstrar mais e mais golpes. É como se eu nunca tivesse ficado longe de uma espada, acho que Gerard estaria orgulhoso.

— Vou deixá-lo encarregado dessa parte, com toda certeza será um professor mais gentil.

— E você vai tirar uma soneca?

— Preciso preparar o ritual para remover sua tatuagem. Me encontrem no topo da colina ao anoitecer — mais uma vez o demônio simplesmente some.

— Bom... vocês o ouviram; A partir de agora, sou o treinador de vocês, e eu não vou pegar leve!

— Por onde vamos começar? Espadas? Lanças? Aquela bola de ferro com espinhos? — Z pergunta, nunca o vi tão empolgado.

— Vamos nos alongar, depois correr — minha resposta parece decepcioná-lo.

— Isso de novo? — Vallery questiona.

Ela já tem uma noção da rotina, passamos semanas apenas melhorando a resistência dela antes de eu começar a ensiná-la a se defender.

— Não adianta nada vocês terem uma arma para usar se vão ficar sem folego antes de chegar perto de seu oponente.

— Se eu te derrubar podemos pular essa parte? — ela pergunta, com as mãos na cintura.

Olho para o Harvey, ele me incentiva a enfrentá-la.

— E se eu te derrubar, vocês não vão poder reclamar de nada durante o treinamento — Duncan e o Z engolem em seco.

— Fechado.

Vallery e eu caminhamos para o centro do dojo. Ela se se alonga, sorrindo, cheia de convicção. Tirar isso dela vai me dar muita satisfação.

Ficamos a distância de um metro um do outro. Harvey está entre nós, como um juiz. Ele olha para ela, depois para mim e, com ambos prontos dá o sinal para começarmos. Como esperado, ela vem para cima de mim na mesma hora. A falta de paciência sempre foi o maior problema da Vallery. Tanto que desvio do seu primeiro golpe com facilidade e, a derrubo no chão com uma rasteira.

— Estamos só começando — ela diz, ao se levantar.

— Luta direito! — Z grita. — Acerta a cara dele!

— Cu-cuidado vocês do-dois... — Duncan pede.

— Você ainda pode desistir — eu digo, mas a resposta dela é um chute, que eu bloqueio. — Te ensinei melhor que isso.

— Eu sei — ela então rodopia no ar e acerta meu rosto com a outra perna. — Não fique aí se achando!

Isso me faz sorrir, agora posso levar a luta a sério. Dessa vez sou eu quem parte para o ataque e, ela faz exatamente o que eu ensinei: desvia de todos os golpes para me fazer gastar energia. Eu paro, tentar acertá-la desse jeito vai me fazer usar mais força do que o necessário e eu não quero feri-la.

Vallery gira ao meu redor, me analisando, buscando uma abertura e, é isso que dou a ela. Finjo dar um soco, apenas para deixá-la desviar e, quando ela vem para cima de mim eu a derrubo com outra rasteira. Dessa vez coloco meu pé sobre o estomago dela, para que não se levante.

— Chega?

— Você me enganou! — ela resmunga.

— Os inimigos costumam fazer isso.

— Então... — Z olha para mim, frustrado. — Correr?

— Cinquenta voltas pelo dojo é um bom começo — respondo, depois me viro para o Harvey. — Você também — ele fez alguns sinais, contrariado. — Se eu não estiver por perto, você precisa cuidar deles. Então nem vem com essa.

Resignado, ele se junta aos outros na corrida. Tiro meu pé de cima de Vallery e ela vai também, mas não me diz uma única palavra. Acho que seu orgulho foi ferido.

— Quando vocês terminarem, vou ensinar alguns golpes, mas só os defensivos.

— Qual é! — Z protesta na mesma hora. — Eu quero atacar!

— Esqueceu? Sem reclamar!

É claro que eu poderia explicar a ele que uma boa defesa costuma ser melhor que um bom ataque e, que um oponente cansado tem menos chance de te vencer, mas ele não ia prestar atenção mesmo, então é melhor poupar energia.

Me sento no meio da sala enquanto observo meus amigos correrem. Eu até poderia me juntar a eles, mas não é o meu físico mortal que precisa de treinamento. Depois de testemunhar uma fração do poder de um arcanjo, me sinto... pequeno.

Mesmo antes dos meus poderes terem sido selados, o máximo que já fiz foi destruir a capital da Larvenia. Eu não tinha a menor ideia de como canalizar esse poder de uma forma controlada e menos brutal, como o arcanjo fez.

Zuhiel parece sempre ter um livro a respeito de cada coisa, até mesmo sobre os Nefilins como eu. Me pergunto onde ele arranja isso, ou quem foi que escreveu. No entanto, desde que me ensine a controlar meu poder, acho que não importa muito.

Eu só... não queria me sentir sempre como na noite em que a Dona Dalma morreu. Naquela hora... meu poder era pura raiva, um ódio tão grande que nem a tatuagem pôde contê-la. E nessas horas eu só consigo pensar em ferir, me vingar ou em derramar sangue. Não é assim que se derrota um oponente experiente. Do pouco que eu sei sobre os arcanjos, a única certeza é que são guerreiros de elite. E, eles também são minha meta. Preciso ser tão forte quanto eles para poder impedi-los de tornar esse mundo um campo de batalha.

Agora, se terei ou não de enfrentar o meu pai, só depende dele. Sei que é difícil imaginar o Diabo como alguém razoável, mas ele é o meu pai. Preciso ao menos tentar persuadi-lo. Talvez com o meu apoio ele possa deixar os humanos em paz. Os mortais já sofrem o bastante sem essa merda toda.

— Nós acabamos — Z se aproxima, me tirando do devaneio.

— Mas já? — Harvey confirma com a cabeça e, dá para ver que todos eles estão suados.

— Vai nos ensinar os golpes ou não?

— Ah sim, claro.

Sacudo a cabeça para voltar a realidade e depois me levanto. Deixo as memórias dos meus tempos com o Gerard voltarem a minha mente e é isso que eu uso com base para o treinamento.

Infelizmente, Vallery é a única que tem algum conhecimento básico. Harvey nunca quis aprender a lutar e o tamanho dele compensava quando ele tinha que entrar numa briga. E eu realmente preferiria que o Duncan e o Z jamais tivessem de lutar, mas sei que é tarde para isso. Tenho que gastar um bom tempo apenas ensinando a eles o jeito certo de dar um soco. Chego a deixar os quatro me socarem só para saber se aprenderam e, na hora noto que o Duncan não está colocando força no golpe.

— Vallery, continue praticando o básico dos movimentos com os outros, eu quero falar como Duncan por um instante.

— Estou com pro-problemas? — ele pergunta, sem conseguir me encarar.

— É claro que não — coloco a mão no ombro dele. — Eu só quero entender porque você continua segurando os seus socos. Já te vi derrubar um cara duas vezes maior quando quis proteger o Z. Sei que você é forte.

— Eu na-não quero brigar... na-não go-gosto — ele se vira para mim. — Quero proteger vocês, de ver-verdade! Eu só... na-não acho que con-consigo fe-ferir outras pe-pessoas.

— É por causa do seu pai, não é? — ele concorda com a cabeça. — Eu sei que você não quer ser como ele. Eu também sei que as vezes para proteger quem nós amamos, o único jeito é usar a violência. E não acho que tenha algo de errado nisso. Mas se você realmente acha que não vai conseguir partir para o ataque, eu vou te ensinar só a defender, ok?

— Obri-obrigado, Dymas! — ele me abraça. — Eu só... que-quero manter to-todos seguros!

— Eu sei, porque você é o nosso guardião.

— Eu so-sou? – o rosto dele fica vermelho.

— Mas é claro! Se lembra de quando te dei essa camisa? — mais uma vez ele concorda com a cabeça. Me refiro a camisa preta com a lua cheia e a silhueta de um lobo que ele só tira quando precisa lava-la. — Eu também te disse que lobos são fortes, mas que eles costumam andar em alcateias, não é? E não é só porque eles caçam melhor assim. Eles sabem que a união faz a força e que devem se proteger. Eu vejo muito disso em você. Desde que se juntou ao nosso grupo eu sinto que ficamos mais unidos, porque você sempre impede as brigas de piorarem, você sempre sabe quando precisa nos acalmar. E quando se trata de nos proteger, eu vejo uma coragem nos seus olhos dina de qualquer cavaleiro da Távola redonda, e falo sério, já conheci alguns. Eu confio em você tanto quanto no Harvey, sei que quando a hora chegar, posso contar com vocês dois sem pensar duas vezes.

— Dymas... — o olho bom dele está lacrimejando. — Vo-você não é meu pa-pai, mas... eu que-queria que fosse!

— Tá brincando? Se eu fosse mesmo seu pai, ia ter que botar vocês de castigo muito mais vezes — tento fazê-lo rir, mas ele só sacode a cabeça negativamente. — Sendo sincero, ser pai... é algo que eu não consigo pensar direito a respeito. Mas um irmão mais velho que vai te proteger até o ultimo suspiro, isso eu posso fazer bem!

— Cer-certo — ele respira fundo. — Eu tam-também não ia que-querer se pa-pai do Z — ele brinca e nós dois sorrimos.

— E por falar nele, melhor nós voltarmos logo antes que ele fique com ciúmes e decida fazer alguma pegadinha.

Depois disso as horas que passamos treinando foram até que tranquilas. Eu até que gostei de ver os quatro se esforçando por um objetivo em comum que não envolvia um crime que me fazia passar o di inteiro os procurando pela cidade. Muito embora o objetivo atual seja igualmente preocupante.

— Por hoje chega — digo e, na mesma hora os quatro desabam no chão do dojo. Amanhã nós vamos correr em volta da ilha ao amanhecer. Então é melhor ninguém   ir dormir tarde!

— Da ilha toda? — Z arregala os olhos. — Quer nos matar?

— Você nunca viu problema em correr quando era para ir comprar revistinhas — eu provoco.

— Deixe de ser resmungão, Z — Vallery pede. — Se quer ficar forte, precisa pagar o preço.

— A ge-gente vai co-comer antes, né?

— Só uma fruta, não quero ninguém vomitando — as vezes, realmente me sinto como um pai, cheio de filhos problemáticos que não me escutam. Então é, como um pai de verdade. — Agora, melhor encontrarmos aquele demônio antes que ele venha aqui nos teleportar.

— Eu gosto do teleporte! — Z diz, com os braços cruzados sobre a cabeça.

Harvey então sinaliza, dizendo que também não gosta. Pelo menos não sou o único que sente incomodado sendo arrastado de um lugar para o outro pela magia.

Caminhamos para fora do dojo e, levamos um tempo para conseguir achar nosso caminho de volta ao primeiro andar. Quando encontro uma janela percebo que o sol já estava se pondo. Acho que encerrei o treinamento bem a tempo.

Atras da mansão tem uma pequena selva com uma trilha levando até a colina e, no topo dela um observatório — ou pelo menos é o que o prédio com um domo no topo parece — que deve ter alguma importância para o tal ritual.

Duncan e o Z correm na frente, como sempre. Já a Vallery está riscando sua inicial em cada arvore pelo caminho, não sei bem para que, não é como se pudéssemos nos perder aqui. E o Harvey está mais quieto do que o costume, desde que chegamos nessa ilha ele se fechou bastante. Tenho que conversar com ele sobre isso depois.

Chegamos ao observatório quando o céu já estava escuro. A porta está aberta. O primeiro andar é só uma sala vazia com desenhos de constelações. Escuto o som de engrenagens se movendo lá em cima, mas ainda não dá para dizer o que é. Depois de subir as escadas noto duas coisas: a primeira é o pequeno altar onde Zuhiel está, no centro dele tem um tipo de prato enorme, ao redor dele três pilares, cada um deles com um símbolo enoquiano — demoro algum tempo para ler as palavras — para céu, terra e inferno. A segunda coisa é que no teto abobadado tem uma representação de um mapa-múndi e nele um pequeno ponto brilhante que não para de se mover através dos oceanos.

— Isso somos nós? — Z aponta para cima.

— É uma representação de onde estamos em tempo real, sim — Zuhiel responde, com um certo orgulho.

— Então estamos perto da Índia? — eu pergunto, mas a ilha continua a se mover, mais rápido do que eu julgaria possível sem que nós sentíssemos.

— Ou da Austrália, ou em breve, da América do Sul — ele dá de ombros. — O importante é continuar em movimento. Isso dificulta sermos localizados.

— Você realmente tem medo dos anjos — Vallery debocha.

— Assim como todos vocês deveriam ter.

— E agora? — eu pergunto, para acabar logo com isso.

— Coloque seu braço no altar — ele responde, como se fosse toda a explicação necessária, então eu não obedeço. — Os pilares representam a origem dos seus poderes. Nesse triângulo de espaço, eles serão neutralizados para impedir que sua regeneração seja ativada. Do contrário, a o selamento simplesmente se voltaria junto da sua pele.

— Isso... vai do-doer? — Duncan pergunta, depois de se esconder atrás do Harvey.

— Eu vou usar essa lâmina, que também é feita de Mythril negro — ele tira uma adaga do bolso interno do terno, que a essa altura eu só posso acreditar que funciona como algum tipo de portal para uma dispensa ou algo do tipo. — Com o poder da lua, farei dela um imã para as partículas que foram misturadas a tinta da tatuagem. Se vai doer? Bem provável.

— Então... só vai tirar o que bloqueia meus poderes? Vou poder ficar com a tatuagem?

— Até onde eu sei, sim.

Isso me tranquiliza, eu meio que me acostumei a olhar para o espelho e ver a serpente enrolado no meu braço. Respiro fundo e estico a mão na direção da tigela, mas não sinto nada diferente, ainda. Meus amigos se afastam, Duncan parece não querer ver de jeito nenhum, mas os outros observam atentamente. O teto do observatório começou a se abrir aos poucos, ele para somente quando forma um círculo do exato tamanho do altar. A luz da lua nos ilumina e o Zuhiel se aproxima com a adaga na mão.

— Seja o que for que sinta, não tire o braço daí.

Eu concordo com a cabeça e me preparo para a dor. A adaga se aproxima do meu braço e... começa a fazer cocegas, como se a tinta começasse a formigar. Eu simplesmente não consigo deixar de rir.

Gostaria de dizer que a sensação continuou assim, mas quando a primeira gota do Mythril negro saiu da minha pele, foi como ser rasgado de dentro para fora. Eu não teria gritado, se fosse só algumas gotas fazendo isso, mas, à medida que a adaga percorria o meu braço todas as outras fizeram o mesmo. A dor é diferente de tudo que já senti, menor, mais concentrada, repetida e constante. Eu acho que consegui bater o recorde de palavrões gritados por segundo. Está quase impossível deixar o braço parado.

Quando Zuhiel caminha para o outro lado, eu me lembro que a tatuagem dá voltas pelo meu braço e que ele devia estar só na metade. Puta merda, não posso simplesmente desistir?

— Mais quanto tempo isso vai durar? — eu pergunto, desesperado.

— Só mais alguns minutos, melhor morder a gola da sua camisa — a voz dele nem esconde o quanto está se divertindo.

Eu sigo o conselho, abafar os gritos é melhor do que acabar mordendo a língua num rompante de dor. Olho para o meu braço direito e, o estado da pele está assustadoramente vermelho, como se ele tivesse tentado limpar minha tatuagem com arame farpado. No estado atual, mal parece uma serpente, é mais um emaranhado de manchas verdes.

De repente, a dor para, mas fico com receio de olhar para trás e ele me dizer que só fez uma pausa.

— Isso é tudo — Zuhiel diz, calmamente.

O teto do observatório se fecha, a luz da lua some e, eu tiro meu braço do triângulo. Me surpreendo ao ver meu braço se curando muito mais rápido do que o costume.

Zuhiel estende o braço na direção do prato e deixa as gotas de Mythril negro misturadas com o meu sangue cair dentro dele.

— Para que isso? — eu pergunto, enquanto tento esquecer da dor.

— Considere como minha comissão — ele dá de ombros. — Nunca se sabe quando o sangue de um nefilim pode ser útil.

— E agora? Não me sinto muito diferente.

— Seus poderes estão aí, sem impedimentos. Basta você acessá-los — ele responde, como se fosse simples. — Mas, ao contrário do que você pensa, não precisa sentir qualquer ódio ou raiva. Seu pai é um arcanjo, não um demônio. Seus poderes vêm da magia celestial, uma das fontes mais puras. A magia dos anjos é parecida com a dos magos humanos, o poder vem de dentro e você faz a natureza se curvar a sua vontade. Tente pensar naquilo que quer proteger.

Eu sempre encarei meus poderes como uma maldição. Mas... e se não fosse o caso? E se fui eu quem sempre compliquei as coisas tentando bloqueá-los? Desde que destruí a Larvenia me vi como um monstro e achei que só traria destruição. As coisas precisam mudar. Fecho meus olhos. Me concentro nos meus amigos, no Gerard, na minha mãe que sempre acreditou que eu seria uma boa pessoa, no mundo que eu quero proteger. Não sinto nada de diferente, mas quando abro os olhos novamente todo o observatório está sendo iluminado por um brilho vermelho. Mas é muito diferente da luz que vem quando estou com raiva.

— Seus olhos... — Z exclama, surpreso. — Nunca vi eles brilharem assim.

— Eles estão brilhando? Eu nem estou com raiva...

— Não é só isso — Vallery aponta para as minhas costas.

Só então percebo que eu tenho um par de asas luminosas. Elas estão arqueadas e eu não sei como as fiz ou como abri-las. E apesar do tamanho, elas são bem leves e não alteram muito meu equilíbrio, embora, eu quase derrube os garotos ao me virar para o Zuhiel.

— Elas vão ficar aqui para sempre?

— Anjos conseguem manifestar suas asas de acordo com sua vontade, então você terá de aprender a controlar isso — ele responde, com outro livro em suas mãos.

— Eu... não consigo fazê-las sumirem...

— Então não vai dormir com a gente hoje — Vallery diz. — O quarto já está apertado o bastante sem isso.

— E o que mais ele pode fazer? — Z corre até o Zuhiel, curioso.

— Por hoje, isso basta — ele se vira para mim. — Controlar as asas é como engatinhar para os anjos, então até aprender a fazer isso, vou me concentrar em ensinar os garotos a usar os poderes dos cavaleiros — ele desaparece assim que termina a frase.

— Bom, acho que tá todo mundo cansado — Vallery diz em seguida. — Melhor nos prepararmos para dar a volta na ilha amanhã.

— Ah, é verdade — Z resmunga. — Boa noite então, Dy.

Eles começam a caminhar na direção da escada.

— Isso é ta-tão legal — Duncan toca minhas asas, antes de correr atras deles.

— Vocês... vão me deixar aqui? — pergunto, incrédulo. — Pessoal, essas asas não passam pela porta!

Harvey ri, depois usas os sinais para dizer que vai com os outros para ficar de olho.

— Isso não é legal! Estão ouvindo?

Não adianta, nenhum deles volta. Tudo que resta sou eu sozinho, tentando fazer as malditas asas sumirem.

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