Se você sente que algo vai dar errado, provavelmente está certo.
Guardo o dinheiro que tomei dos dois nos meus bolsos o melhor que
consigo. Tenho que admitir que eles fizeram um bom trabalho, a quantidade é
realmente boa, só queria que mantivessem os problemas no mínimo. E o pior é que
se eu solto qualquer elogio para o Z ele toma isso como validação para o que
ele fez e eu não posso incentivar esse tipo de comportamento.
O que o pai dele diria se estivesse aqui? Provavelmente, algo melhor do
que ameaçar jogar o pobre garoto na rua. Qual o meu problema? E se o Duncan não
entrasse no meio? Eu ia mesmo fazer isso? Não sei se conseguiria e, se eu não
fizesse, ele nunca mais respeitaria minha autoridade. Que raiva! Vivo dizendo
que não sou pai deles, mas cá estou eu pensando como um! Quer saber? Chega!
Vou focar na Vallery no momento, um problema de cada vez!
Minha próxima parada é no cemitério. Harvey vai estar lá, tenho certeza
disso. Nesse mesmo dia cinco anos atras o irmão dele morreu, ou melhor, foi
assassinado.
Ainda me lembro bem daquela noite. O barulho dos tiros. Os gritos
enfurecidos. O sangue se espalhando pelo chão. O olhar do Harvey ao lado do
irmão baleado. E o som das sirenes pouco antes de sairmos de lá.
Até hoje não sei exatamente o que aconteceu para eles terminarem assim.
Mas jamais vou me esquecer do que o Philip me pediu: “Cuide do meu irmão,
por favor... nós não temos mais ninguém...”
Essas foram suas últimas palavras. Como eu poderia fazer algo além de
aceitar? Harvey estava tão assustado, seus olhos implorando por ajuda, suas
mãos tremiam enquanto tentava estancar o sangramento e sei que se ele pudesse,
estaria gritando. Os homens que haviam trocado tiros com o Philip ainda estavam
perto, as sirenes da polícia se aproximavam, eu tive de tomar uma decisão. Puxei
o Harvey de lá pelos braços. Senti seu corpo se debatendo, tentando firmar os
pés, mas não o deixei voltar. Talvez tivesse sido melhor, porque depois de
acolher ele, eu não tive como dizer não aos outros. Meu coração já tinha
deixado alguém entrar, então não consegui impedir aqueles idiotas de fazerem o
mesmo.
Paro um instante e acendo outro cigarro, apenas o segundo do dia. Minha
cabeça está cheia de preocupação e de luto. De um lado tenho o Harvey, que deve
estar sofrendo e precisando do meu apoio e do outro eu tenho a Vallery, prestes
a cometer alguma burrada. Eu tenho até medo de imaginar o que vai ser dessa
vez.
Me sinto um cretino, mas estou indo na direção do cemitério primeiro
porque acho que o Harvey pode saber onde a Vallery está. Como ele não pode
falar, ela caba dizendo mais do que deveria na frente dele, achando que não tem
como ser dedurada. Contudo, já tem um tempo que o Harvey e eu estamos estudando
a linguagem de sinais, mas é um segredo só nosso, nos ajuda a cuidar dos
outros.
Termino de tragar o cigarro e volto a caminhar. Estou tentando decidir o
que dizer. Eu não conheci o Philip em vida, tudo que sei sobre ele é que em
seus últimos segundos ele genuinamente se preocupava com o irmão. O Harvey diz
que ele era uma pessoa ruim, mas nunca entra em detalhes do porquê. Tudo que
sei é que apesar disso, ele sofreu por meses após a morte do irmão e sempre
fica deprimido nessa época do ano.
Ainda não sei dizer se foi sorte eu estar la naquela noite. Eu tinha
saído para caminhar, estava precisando desestressar. Quando ouvi os tiros
estava pronto para chutar o traseiro de quem quer que fosse, fiquei até ansioso
por uma briga. Contudo, o que encontrei foi aquele que viria a ser um dos meus
melhores amigos, um parceiro, um irmão.
Apesar de não falar, Harvey é com quem eu mais converso. Com o tempo
passamos a entender o que o outro pensa apenas com uma troca de olhares e agora
com a linguagem de sinais está ficando ainda mais fácil nossa comunicação. Confio
nele mais que em qualquer pessoa que conheci ao longo dos séculos e posso
contar com ele até mesmo nessa tarefa impossível que é cuidar dos nossos amigos
imãs de problemas.
Finalmente chego ao cemitério, sei onde a lapide do Philip fica. bem no
fundo — em uma parte onde a cidade enterra os indigentes e criminosos, pelo
menos até precisarem do espaço para outro corpo —, não demoro para achar o
Harvey sentado na grama com um olhar distante. Assim que nossos olhares se
cruzam consigo captar uma boa noção do que ele está sentindo: raiva, saudade,
tristeza e decepção, tudo de uma vez.
A lápide está enterrada sob o chão, uma placa de concreto de pouco mais
de 30 centímetros de largura e 6 de altura, não tem nada além do nome e as duas
datas com uma linha entre elas:
Philip Johnson 1985 – 2002.
— Ele estaria orgulhoso do homem que você é agora — não é mentira, me
sinto da mesma forma.
Levo minha mão até o ombro dele, queria poder consolá-lo de alguma forma,
mas ele apenas olha para mim e balança a cabeça negativamente. Não sei se ele
fez isso porque não se considera uma boa pessoa — o que seria ridículo —, ou
porque ele acha que o irmão não gostaria disso, afinal ele morreu como um
traficante.
— Deixa disso. Não acho que vocês tenham escolhido aquela vida — Harvey
já tinha me contado a história, o melhor que ele pôde. — Philip morreu
justamente tentando te tirar daquilo.
Ele desvia o olhar, é inútil tentar defender o irmão dele, eu não o
conheci afinal, nem posso imaginar tudo que passaram desde que eles perderam a
mãe até o momento em que se juntaram ao crime.
— Não quero te atrapalhar, mas... — precisei puxar bastante ar
para criar coragem de trazer um problema para ele em um momento extremante
melancólico e pessoal. — Por acaso sabe onde Vallery se enfiou? Z deu a
entender que ela está prestes a fazer alguma idiotice. E como eu dei uma bronca
nele, não quis me contar.
Mais uma vez ele se vira para mim. Com os poucos sinais de libras que ele
sabe, tenta me contar e, pelo que consigo entender a Vallery está envolvida com
a gangue do Mão de Aço, só para variar. Isso me faz trincar os dentes de raiva.
Ao contrário do Z, a Vallery não consegue se contentar em dar golpes para
arranjar alguns trocados, não, seu apetite sempre pede algo maior. Ela gosta da
adrenalina, da emoção de invadir casas com a segurança cada vez mais
sofisticada só pelo desafio. Chego a me arrepender de ter a ensinado a
destravar fechaduras.
Nos últimos meses ela está andando demais com aqueles babacas, mesmo
sabendo que eles nos odeiam e que querem nos ferrar. E não importa o quanto eu
diga que é perigoso, ela continua querendo brincar de gangster.
— Essa garota ainda vai conseguir me deixar louco! — massageio as
têmporas, tentando não deixar a frustração me dominar.
Pego outro cigarro e me afasto um pouco do Harvey antes de acendê-lo. Sinto
vontade de arrastá-lo comigo, mas não o faço. De um jeito ou de outro, preciso
resolver isso sozinho. Então apenas aceno para me despedir antes de começar a
caminhar para fora do cemitério. Pensar no que Vallery pode estar metida dessa
vez faz minha cabeça doer. Decido não especular mais e ir direto atrás das
respostas.
O Mão de Aço tem pequenos esconderijos por toda a cidade. Em alguns ele
guarda drogas; em outros armas, as vezes documentos falsos, mas sempre alguma
coisa ilegal o bastante para mantê-lo na cadeia para sempre. E de alguma forma,
ele continua a escapar da polícia.
Eu corro até o esconderijo mais próximo. Um prédio no centro comercial, O
primeiro andar tem uma loja de quinquilharias como disfarce, no segundo, eles
fabricam metanfetamina.
— Eita, porra! — um dos capangas quase tem um ataque quando chuto a porta
para dentro.
— O Demónio Branco tá aqui! — grita outro deles.
Os dois primeiros estão sentados no sofá, assistindo a uma partida de
futebol. Tem um terceiro no canto, sentado em uma cadeira de madeira, lendo uma
revista, ele a deixa de lado e apontou a arma para mim. Além deles escuto
várias vozes agitadas na outra sala, onde o laboratório deve ficar.
— Cê tá caçando encrenca?! — apesar disso, o rosto dele deixa escapar o
pânico e a arma treme em sua mão.
— Melhor abaixar essa coisa — dou um sorriso gentil. — Não vai querer que
ela acabe sendo enfiada no seu rabo, ou vai? — toda a sala é iluminada pelo
brilho vermelho dos meus olhos, ele engole em seco.
— O que... o que você quer?! — um dos idiotas no sofá pergunta.
— Fiquem tranquilos. Não vim chutar os traseiros de vocês, dessa vez
— respondo, com minha voz mais amistosa. — Só quero saber se algum dos idiotas
viu a Vallery hoje.
— A maluca do cabelo raspado? — o que está na cadeira pergunta.
— Isso. Ela mesmo.
— Ela saiu com o Ted e o Boca Torta. Acho que eles foram roubar algum
ricaço, ou algo assim — ele responde, depois deixa a arma em cima da mesa de
canto.
— Cale a boca! — o que está do lado direito do sofá grita. — O chefe não
vai querer ele se metendo!
— É! — o outro concorda. — Tem muita grana envolvida! Vai ser bom
para todo mundo!
Isso me faz morder a parte interna da bochecha para tentar manter a
calma.
— Eu já cansei de dizer para vocês ficarem longe do meu beco ou
dos meus garotos — o brilho em meus olhos aumenta, a televisão para de
funcionar e eles arregalam os olhos. — Mesmo assim, vocês deixaram a Vallery se
envolver nas suas merdas!
— Não é nossa culpa! — diz o cara do lado esquerdo do sofá. — Ela nos
procurou e passamos o serviço!
— Vocês vão me dizer onde ela está, e vão dizer agora! — a TV
explode, a sala é tomada por cacos de vidro e o cheiro de algo queimando.
Depois disso não demoro para conseguir a resposta que vim buscar. Sinto
vontade de dar uma surra neles, mas deixo isso para depois. O meu
pressentimento de que algo ruim ia acontecer está mais do que certo. Vallery
está passando dos limites! Invadir a casa de um senador no meio do dia tem tudo
para dar errado!
Corro na direção do Jardim das Oliveiras — um dos bairros com as casas
mais caras da cidade — pensando a respeito do meu apelido: Demônio Branco. Não
acho que já tenha recebido um nome que combine mais. Tudo isso tem a ver com a
cor do meu cabelo e meus olhos vermelhos, talvez um pouco por conta da minha
reputação um tanto... exagerada. Tudo bem que vez ou outra eu realmente
precise quebrar alguns ossos, ou arrancar a mão de certos babacas que acham que
podem fazer o que quiser na minha cidade, mas juro que tento não partir para
violência na maior parte do tempo.
Sei que tirando a estranheza do meu visual as pessoas não me levavam
muito a sério. Quem levaria? Eu Tinho apenas 1, 76, meu porte físico é de um
garoto magricela e mal dá para notar os músculos no meu corpo. Mas qualquer um
que me subestime pela aparência acaba se arrependendo.
O que as pessoas não sabem é que eu não posso morrer. Não importa o que
tentem, e já tentaram de formas que não gosto nem de lembrar. Então é, eu não tenho
medo de entrar em uma briga. Eu até tento manter o castigo equivalente ao
crime. Um assalto em uma loja? É só dar uma surra e entregar para polícia. Um
grupo surrando alguém mais fraco? Nesse caso, eu quebro alguns braços e pernas.
Agora, um assassino, agressor de mulheres e crianças, ou um estuprador? Esses
eu não perdoo. Seus corpos jamais vão ser encontrados.
Talvez isso me torne um pouco hipócrita, considerando que tive de roubar centenas
de vezes para não passar fome. mas para mim existe uma grande diferença entre
tentar sobreviver e ferir outras pessoas.
Provavelmente é por isso que o Mão de Aço me odeia tanto — também pode
ser porque arranquei a mão dele —, eu não deixo seus negócios se aproximarem do
meu beco, nenhum deles. Além disso, sei que ele está interessado no hospital.
Para que ainda é uma pergunta que me incomoda.
Nossa história de inimizade já se estende por quase uma década, o conheci
quando ainda era só eu vivendo naquele hospital abandonado, eram tempos mais
simples.
O Mão de Aço — não consigo lembrar de seu nome verdadeiro, maldito
apelido! — havia começado como qualquer outro traficante: entrou para uma
gangue e começou a vender. É claro que isso não era suficiente, ele foi
ambicioso, mostrou serviço, eliminou a concorrência e foi subindo de posto. Até
aí, tudo bem. Não acho que alguém na posição dele faria algo diferente. Mas por
algum motivo ele cismou que quer o Beco Saint Annie. Chegou a um ponto onde ele
começou a mandar seus capangas cobrarem por proteção deles mesmos. Isso foi
demais para mim. Sério, eu nem ligava de ter de espantar dois ou três do
hospital todos os dias. No entanto, ver aqueles idiotas assustando os
moradores, apontando as armas e quebrando as lojas me irritou profundamente.
Eu fui direto até ele, tive de forçar um de seus capangas a me levar, mas
lá estávamos nós cara a cara. Eu disse que ele podia continuar fazendo o que
quisesse, desde que ficasse longe do meu território — até porque, não tinha
como eu estar em cada canto da cidade ao mesmo tempo —, mas ele riu de mim, se
vangloriou do tamanho de sua operação e das suas armas pesadas. Acho que ele
não deveria ter feiro isso.
Normalmente já é difícil controlar meus impulsos, nessas situações então,
me deixo levar. Quando dei por mim, já tinha matado todos os capangas da casa,
só restava ele. É claro que eu poderia tê-lo matado ali, quase como se pisasse
em uma formiga, mas qual o propósito? Eu já tinha deixado claro quem é que
mandava e que ele não podia me vencer. Se o matasse, iria ter de lidar com o
próximo cara querendo tomar o lugar dele. Então para garantir que ele tinha me
entendido, dei um último presente naquela noite — ou será que tirei um
presente? —, achei a maior faca de cozinha da casa e cortei a mão direita dele
fora. Nunca me diverti tanto ouvindo alguém gritar, juro. Toda a pose de durão,
a fala mansa, o olhar de superioridade... tudo isso se foi assim que ele viu a
mão cair no chão. Acho que nenhum de nós se esquecerá daquela noite.
Se deu certo? Por muito tempo, sim. Foi só nos últimos dois anos que seus
homens voltaram a ousar se aproximar do beco. Não chegavam a tentar alguma
coisa, mas se andavam por lá mesmo assim, para mostrar que estavam de olho em
mim.
Vallery acabou se deixando impressionar com as histórias dos roubos mais
inusitados. A idiota até mesmo chegou a traficar algumas vezes. Quando eu
descobri deixei claro que se a pegasse de novo com alguma droga iria
expulsá-la. Pelo menos essa parte ela ouviu. Mas cá estou eu tendo de salvá-la
de si mesma. Eu sei que o único propósito disso é me irritar. Se o Mão de Aço
não pode me ferir diretamente, é claro que ele vai usar alguém próximo a mim.
Finalmente chego à rua do Senador Flinch, já é quase meio-dia. Esse lugar
é bem diferente do resto da cidade. O asfalto não tem um único defeito ou
buraco, a calçada segue um padrão de tijolos alaranjados postos na diagonal que
terminam em uma grande faixa de grama levando até as casas — uma maior que a
outra. Eu não sei qual delas é a certa, mas antes que eu possa pedir
informações a algum morador, vejo três viaturas da polícia se aproximando em
alta velocidade.
Torço para que passem direto pela rua e sumam no horizonte, mas não. Eles
param a menos de vinte metros de onde estou, na frente de uma casa verde de
três andares. Eu tenho certeza na mesma hora de que é lá que a Vallery está.
Tem mais viaturas se aproximando, ambulâncias também. Nenhum mero roubo
chamaria tanta atenção. Algo deu errado.
Me aproximo, preocupado. Minha vontade é de afastar todas as pessoas que estão
se aglomerando ao redor da casa, mas não posso. Tenho de manter a calma
enquanto penso em um plano decente.
— Uma pena ele ter morrido... — um dos vizinhos comenta, ele ainda está
de pijama, acho que saiu correndo par fora assim que ouviu as sirenes.
— Espero que a família dele receba uma boa indenização... — disse a
mulher ao lado dele. — Gente-boa, humildes.
Meu coração gela. Alguém morreu.
Pouco tempo depois vejo a Vallery sendo arrastada por dois policiais na
direção de uma das viaturas. Seu olhar encontra o meu. Posso sentir o pânico, o
remorso, a súplica. Nunca a vi chorar antes, mas agora, ela não consegue parar.
Os capangas do Mão de Aço são levados logo depois. Estão agitados,
assustados, mais do que pessoas como eles deveriam ficar por causa de um
assassinato. Eles param de resmungar sobre algo que aconteceu lá dentro.
— Sabe o que houve? — pergunto para um dos policiais fazendo anotações.
— Tiros. Muitos tiros — ele responde, sem paciência, sequer tira
os olhos do bloco de notas.
— Quem morreu?
— O jardineiro, pelo que parece — ele se afasta, sem dar importância a
minha presença.
Vou até a viatura onde a Vallery está. Os polícias tentam me impedir, mas
me esquivo deles, a essa altura não tem como saber quando poderei vê-la de
novo. Por mais que ela me cause preocupação com suas atitudes e seu desejo por
aventura, Vallery ainda é uma de nós. Eu não consigo acreditar que ela mataria
alguém.
— Me diz que não foi você! — foi quase uma ordem.
Ela me encara, vejo sua boca abrindo, mas sou arrastado para longe antes
de ter uma resposta.
— Cai fora, garoto! — um policial me puxa pelo ombro. — Ou vou ter que
prendê-lo também — ele acrescenta.
Sou obrigado a assistir a viatura dar partida e desaparecer no horizonte.
Isso me entristece. Quero acreditar que houve algum engano, que ela é inocente.
Mas se não foi ela, por que então me olharia daquele jeito? Era arrependimento
puro o que eu vi.
Mas espera! Vallery não é assim! Quando ela faz alguma coisa,
gosta de se gabar, até demais. Se ela fosse culpada seria bem capaz de sair
gritando para os policiais o que tinha feito, não foi o que aconteceu. Isso tem
cara de armação! Tem que ser!
Estou cansado demais para correr o caminho todo de volta, mas sei quem
preciso ver: o Mão de Aço. Ele finalmente achou uma forma de me atingir, minha
aposta é que ele manipulou tudo isso.
Ando pela rua até achar um taxi, na mesma hora estendo o braço para
fazê-lo parar. Ele desacelera de forma hesitante, olha para o meu rosto e engole
em seco. Eu mostro as notas emboladas e pe só então que ele abre a porta.
— Para onde?
— Eastlake — digo, com determinação.
Era lá onde o desgraçado vivia. Se era para tirar satisfações, tinha que
ser com o chefão. Estou cansado de botar seus capangas para correr para manter
uma suposta paz. Só quero uma resposta e, se eu não gostar do que eu ouvir, ele
já era.
Minha cabeça não parou um segundo durante o trajeto. Quando chego peço para
o taxista esperar e deixar o carro ligado. Entrego uma parte das notas para
garantir, talvez uns 100 dólares.
Tem dois seguranças na porta, eu os derrubo com um soco em cada. O portão
é de aço, cheio de trancas e seria trabalhoso demais tentar destravá-lo, então apenas
o derrubo. Um chute, um estrondo, estou dentro.
Cerca de vinte capangas correm na minha direção, todas as armas estão
apontadas para mim — rifles, metralhadoras, pistolas, um lança foguete... como
eles arranjam isso? —, não me importo nem um pouco, até quero que atirem
para justificar um contra-ataque.
— Se
quiserem gastar munição, vão em frente — digo, enquanto sigo meu caminho.
Eles
continuam apontando as armas para mim, mas não atiram, sábia decisão. Eu entro
pela porta da frente, ignoro a decoração cafona do lugar e vou direto até o
filho da puta.
— O Demônio
Branco em minha propriedade — o Mão de Aço vem me receber na sala de estar. Ele
está com o cabelo bem cortado, roupa social, sapatos caros, uma aliança na mão
esquerda e sua prótese de aço na direita. — Será que devo chamar a polícia?
— Sabe muito
bem por que vim aqui — meus olhos brilham e o vermelho é refletido na mão
de metal. — Você armou para a Vallery hoje. Quero que dê um jeito nisso.
— Acabei de
saber o que aconteceu. Trágico, não?
Eu não
respondo, então ele continua:
— Meus
homens, pobres coitados. Testemunharam um assassinato. E ainda foram
presos como cumplices! Que injustiça — nunca vi tanta falsidade antes. — Mas
pelo menos eu posso pagar um advogado para ajudá-los, não é mesmo? Será
que você pode?
— Então não
nega — o sorriso em meu rosto aumenta. — Eu já imaginava que era mesmo sua
culpa. Vallery pode ser irresponsável, mas não mataria alguém.
— Minha
culpa? — ele pergunta, fingindo estar chocado. — A garota sempre aparece
querendo se meter em negócio de gente grande. Ela é quem nos procura. Se algo
saiu errado, a culpa é dela. Se você não consegue controlar o seu
grupinho de delinquentes o problema é seu! Não tenho nada a ver com
isso.
— Espero que
esteja se divertindo — respondo, meus punhos estão cerrados, me sinto ansioso
por um pretexto pata quebrar a cara dele. — Se eu não conseguir resolver
isso... vou voltar aqui. E você vai ir para um lugar muito pior do que a
cadeia — os vidros explodem por toda a casa, até acho que fritei algumas TVs,
mas ele não tira o sorriso da cara.
— Vou
esperar ansiosamente — ele responde, apontando para a porta. — Agora dê
o fora, tenho mais o que fazer!
Eu poderia
matá-lo aqui mesmo, mas não o faço. Por mais que destruir a casa e os capangas
fosse aliviar minha tensão, eu tenho problemas maiores. Então saio, mas não sem
antes acenar gentilmente para os capangas no quintal.
O taxista
ainda está esperando, seus olhos estão arregalados e o dinheiro está intocado.
Talvez ele tenha ficado com medo de pegar uma maldição ou algo assim por minha
causa, não me importo.
— Para...
para onde? — as mãos dele tremem.
— A
delegacia 46 — respondo, impaciente.
Fecho os
olhos, preciso me acalmar, não posso chegar desse jeito na delegacia. Fora que
ainda nem sei como vou fazer para ver a Vallery, mas eu conheço alguém que
talvez possa ajudar.
O veículo
paro. Saio do carro e o taxista não perde tempo em pisar no acelerador. Quem eu
vim procurar á está do lado de fora, segurando um copo de café. O sargento
Ramirez é o que posso chamar de aliado. Nós temos uma relação delicada — ele
faz vista grossa para mim e os garotos, e eu entrego para ele criminosos de
verdade — e ele com certeza já sabia que eu viria procurá-lo.
Bruno
Ramirez, um homem de pouco mais de 40 anos, um bom policial e alguém em quem eu
confio. Ele é hispânico, tem cabelos escuros e olhos castanhos cansados, parece
mais velho do que realmente é, acho que tem a ver com o estresse do trabalho.
Normalmente ele sorri quando me vê, mas não dessa vez.
— Sargento! Há
quanto tempo! — tento parecer simpático, apesar da preocupação. — Trouxe
presentes — tiro as carteiras dos bolsos e estendo a mão.
— E onde
será que conseguiu isso? — ele revira os olhos, mas pega mesmo assim. — Sei o
que vai me pedir, nem adianta — estudo sua expressão, está séria demais
para o meu gosto. — Sua amiga se meteu com gente da pesada e, alguém morreu.
Não tem como varrer para debaixo do tapete.
— Nem me
deixou falar — brinco. — Como é que vai saber o que eu quero?
— Você quer
vê-la — ele parece ter lido minha mente. — Não vai rolar — ele toma um longo
gole do café, depois fez uma carreta. — Você não é advogado, parente, nem mesmo
tem uma identificação para o formulário de visitas. Não consigo te deixar
entrar sem ter problemas.
Eu baixo o
olhar, me sinto péssimo. Poderia tentar arrancá-la lá de dentro. Mas além de
todo o risco, isso faria dela uma fugitiva e colocaria todos os outros em risco.
— Além
disso, ela está sendo interrogada no momento — ele acrescenta.
— Preciso
saber se ela fez isso ou não. Não posso sair daqui sem saber!
Ele apenas
nega com a cabeça.
— Quantas
vezes você já veio até mim precisando de ajuda? — pergunto, com os punhos
cerrados. — Me lembro de casos muito piores do que esse! E eu sempre te
ajudo, não é?! Até onde sei, conseguiu ser promovido graças a uma dica minha! —
não gosto nem um pouco de usar nossa relação para atingi-lo, mas senti que
precisava tentar.
— Eu
agradeço por isso todos os dias mantendo o pessoal longe daquele beco e dos
garotos! — ele grita de volta, algumas pessoas param para olhar, ele se recompõe.
— Faça-me um favor, Dymas, vá embora. Isso não é um roubo de esquina. Sua amiga
pode ter matado alguém, um homem inocente que estava trabalhando, para o
Senador Flinch, ainda por cima! Deixe a investigação seguir seu curso.
— Mas é por
isso mesmo, porra! — não consigo me conter. — Se estivesse no meu lugar,
não ia querer olhar nos olhos dela e perguntar?!
— Sim,
gostaria. E é por isso que lamento, garoto. Volte para casa, descanse, você vai
precisar — ele me dá as costas e volta para a delegacia.
Sinto
vontade de derrubar as paredes, de causar a maior briga que essa cidade já viu,
mas me contenho. A última vez que deixei minha raiva tomar conta... não. Melhor
não pensar nisso. Agora eu sou diferente, estou sob controle.
Acendo um
cigarro enquanto me afasto, queria que a nicotina pudesse fazer os problemas
sumirem, mas não funciona. Bufo, depois chuto uma lixeira para o outro lado da
rua
— Talvez eu
possa ajudá-lo, vossa majestade — escuto uma voz vindo de trás e um
calafrio percorreu o meu pescoço. — Não. Isso está errado. Eu deveria dizer... Príncipe
sem reino, não é mesmo?
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