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Herdeiros do Caos - O lamento do príncipe capítulo 2

 Se você sente que algo vai dar errado, provavelmente está certo.

 

 

Guardo o dinheiro que tomei dos dois nos meus bolsos o melhor que consigo. Tenho que admitir que eles fizeram um bom trabalho, a quantidade é realmente boa, só queria que mantivessem os problemas no mínimo. E o pior é que se eu solto qualquer elogio para o Z ele toma isso como validação para o que ele fez e eu não posso incentivar esse tipo de comportamento.

O que o pai dele diria se estivesse aqui? Provavelmente, algo melhor do que ameaçar jogar o pobre garoto na rua. Qual o meu problema? E se o Duncan não entrasse no meio? Eu ia mesmo fazer isso? Não sei se conseguiria e, se eu não fizesse, ele nunca mais respeitaria minha autoridade. Que raiva! Vivo dizendo que não sou pai deles, mas cá estou eu pensando como um! Quer saber? Chega! Vou focar na Vallery no momento, um problema de cada vez!

Minha próxima parada é no cemitério. Harvey vai estar lá, tenho certeza disso. Nesse mesmo dia cinco anos atras o irmão dele morreu, ou melhor, foi assassinado.

Ainda me lembro bem daquela noite. O barulho dos tiros. Os gritos enfurecidos. O sangue se espalhando pelo chão. O olhar do Harvey ao lado do irmão baleado. E o som das sirenes pouco antes de sairmos de lá.

Até hoje não sei exatamente o que aconteceu para eles terminarem assim. Mas jamais vou me esquecer do que o Philip me pediu: “Cuide do meu irmão, por favor... nós não temos mais ninguém...”  

Essas foram suas últimas palavras. Como eu poderia fazer algo além de aceitar? Harvey estava tão assustado, seus olhos implorando por ajuda, suas mãos tremiam enquanto tentava estancar o sangramento e sei que se ele pudesse, estaria gritando. Os homens que haviam trocado tiros com o Philip ainda estavam perto, as sirenes da polícia se aproximavam, eu tive de tomar uma decisão. Puxei o Harvey de lá pelos braços. Senti seu corpo se debatendo, tentando firmar os pés, mas não o deixei voltar. Talvez tivesse sido melhor, porque depois de acolher ele, eu não tive como dizer não aos outros. Meu coração já tinha deixado alguém entrar, então não consegui impedir aqueles idiotas de fazerem o mesmo.

Paro um instante e acendo outro cigarro, apenas o segundo do dia. Minha cabeça está cheia de preocupação e de luto. De um lado tenho o Harvey, que deve estar sofrendo e precisando do meu apoio e do outro eu tenho a Vallery, prestes a cometer alguma burrada. Eu tenho até medo de imaginar o que vai ser dessa vez.

Me sinto um cretino, mas estou indo na direção do cemitério primeiro porque acho que o Harvey pode saber onde a Vallery está. Como ele não pode falar, ela caba dizendo mais do que deveria na frente dele, achando que não tem como ser dedurada. Contudo, já tem um tempo que o Harvey e eu estamos estudando a linguagem de sinais, mas é um segredo só nosso, nos ajuda a cuidar dos outros.

Termino de tragar o cigarro e volto a caminhar. Estou tentando decidir o que dizer. Eu não conheci o Philip em vida, tudo que sei sobre ele é que em seus últimos segundos ele genuinamente se preocupava com o irmão. O Harvey diz que ele era uma pessoa ruim, mas nunca entra em detalhes do porquê. Tudo que sei é que apesar disso, ele sofreu por meses após a morte do irmão e sempre fica deprimido nessa época do ano.

Ainda não sei dizer se foi sorte eu estar la naquela noite. Eu tinha saído para caminhar, estava precisando desestressar. Quando ouvi os tiros estava pronto para chutar o traseiro de quem quer que fosse, fiquei até ansioso por uma briga. Contudo, o que encontrei foi aquele que viria a ser um dos meus melhores amigos, um parceiro, um irmão.

Apesar de não falar, Harvey é com quem eu mais converso. Com o tempo passamos a entender o que o outro pensa apenas com uma troca de olhares e agora com a linguagem de sinais está ficando ainda mais fácil nossa comunicação. Confio nele mais que em qualquer pessoa que conheci ao longo dos séculos e posso contar com ele até mesmo nessa tarefa impossível que é cuidar dos nossos amigos imãs de problemas.

Finalmente chego ao cemitério, sei onde a lapide do Philip fica. bem no fundo — em uma parte onde a cidade enterra os indigentes e criminosos, pelo menos até precisarem do espaço para outro corpo —, não demoro para achar o Harvey sentado na grama com um olhar distante. Assim que nossos olhares se cruzam consigo captar uma boa noção do que ele está sentindo: raiva, saudade, tristeza e decepção, tudo de uma vez.

A lápide está enterrada sob o chão, uma placa de concreto de pouco mais de 30 centímetros de largura e 6 de altura, não tem nada além do nome e as duas datas com uma linha entre elas:

Philip Johnson 1985 – 2002.

— Ele estaria orgulhoso do homem que você é agora — não é mentira, me sinto da mesma forma.

Levo minha mão até o ombro dele, queria poder consolá-lo de alguma forma, mas ele apenas olha para mim e balança a cabeça negativamente. Não sei se ele fez isso porque não se considera uma boa pessoa — o que seria ridículo —, ou porque ele acha que o irmão não gostaria disso, afinal ele morreu como um traficante.

— Deixa disso. Não acho que vocês tenham escolhido aquela vida — Harvey já tinha me contado a história, o melhor que ele pôde. — Philip morreu justamente tentando te tirar daquilo.

Ele desvia o olhar, é inútil tentar defender o irmão dele, eu não o conheci afinal, nem posso imaginar tudo que passaram desde que eles perderam a mãe até o momento em que se juntaram ao crime.

— Não quero te atrapalhar, mas... — precisei puxar bastante ar para criar coragem de trazer um problema para ele em um momento extremante melancólico e pessoal. — Por acaso sabe onde Vallery se enfiou? Z deu a entender que ela está prestes a fazer alguma idiotice. E como eu dei uma bronca nele, não quis me contar. 

Mais uma vez ele se vira para mim. Com os poucos sinais de libras que ele sabe, tenta me contar e, pelo que consigo entender a Vallery está envolvida com a gangue do Mão de Aço, só para variar. Isso me faz trincar os dentes de raiva.

Ao contrário do Z, a Vallery não consegue se contentar em dar golpes para arranjar alguns trocados, não, seu apetite sempre pede algo maior. Ela gosta da adrenalina, da emoção de invadir casas com a segurança cada vez mais sofisticada só pelo desafio. Chego a me arrepender de ter a ensinado a destravar fechaduras.

Nos últimos meses ela está andando demais com aqueles babacas, mesmo sabendo que eles nos odeiam e que querem nos ferrar. E não importa o quanto eu diga que é perigoso, ela continua querendo brincar de gangster.

— Essa garota ainda vai conseguir me deixar louco! — massageio as têmporas, tentando não deixar a frustração me dominar.

Pego outro cigarro e me afasto um pouco do Harvey antes de acendê-lo. Sinto vontade de arrastá-lo comigo, mas não o faço. De um jeito ou de outro, preciso resolver isso sozinho. Então apenas aceno para me despedir antes de começar a caminhar para fora do cemitério. Pensar no que Vallery pode estar metida dessa vez faz minha cabeça doer. Decido não especular mais e ir direto atrás das respostas.

O Mão de Aço tem pequenos esconderijos por toda a cidade. Em alguns ele guarda drogas; em outros armas, as vezes documentos falsos, mas sempre alguma coisa ilegal o bastante para mantê-lo na cadeia para sempre. E de alguma forma, ele continua a escapar da polícia.

Eu corro até o esconderijo mais próximo. Um prédio no centro comercial, O primeiro andar tem uma loja de quinquilharias como disfarce, no segundo, eles fabricam metanfetamina.

— Eita, porra! — um dos capangas quase tem um ataque quando chuto a porta para dentro.

— O Demónio Branco tá aqui! — grita outro deles.

Os dois primeiros estão sentados no sofá, assistindo a uma partida de futebol. Tem um terceiro no canto, sentado em uma cadeira de madeira, lendo uma revista, ele a deixa de lado e apontou a arma para mim. Além deles escuto várias vozes agitadas na outra sala, onde o laboratório deve ficar.

— Cê tá caçando encrenca?! — apesar disso, o rosto dele deixa escapar o pânico e a arma treme em sua mão.

— Melhor abaixar essa coisa — dou um sorriso gentil. — Não vai querer que ela acabe sendo enfiada no seu rabo, ou vai? — toda a sala é iluminada pelo brilho vermelho dos meus olhos, ele engole em seco.

— O que... o que você quer?! — um dos idiotas no sofá pergunta.

— Fiquem tranquilos. Não vim chutar os traseiros de vocês, dessa vez — respondo, com minha voz mais amistosa. — Só quero saber se algum dos idiotas viu a Vallery hoje.

— A maluca do cabelo raspado? — o que está na cadeira pergunta.

— Isso. Ela mesmo.

— Ela saiu com o Ted e o Boca Torta. Acho que eles foram roubar algum ricaço, ou algo assim — ele responde, depois deixa a arma em cima da mesa de canto.

— Cale a boca! — o que está do lado direito do sofá grita. — O chefe não vai querer ele se metendo!

É! — o outro concorda. — Tem muita grana envolvida! Vai ser bom para todo mundo!

Isso me faz morder a parte interna da bochecha para tentar manter a calma.

— Eu já cansei de dizer para vocês ficarem longe do meu beco ou dos meus garotos — o brilho em meus olhos aumenta, a televisão para de funcionar e eles arregalam os olhos. — Mesmo assim, vocês deixaram a Vallery se envolver nas suas merdas!

— Não é nossa culpa! — diz o cara do lado esquerdo do sofá. — Ela nos procurou e passamos o serviço!

— Vocês vão me dizer onde ela está, e vão dizer agora! — a TV explode, a sala é tomada por cacos de vidro e o cheiro de algo queimando.

Depois disso não demoro para conseguir a resposta que vim buscar. Sinto vontade de dar uma surra neles, mas deixo isso para depois. O meu pressentimento de que algo ruim ia acontecer está mais do que certo. Vallery está passando dos limites! Invadir a casa de um senador no meio do dia tem tudo para dar errado!

Corro na direção do Jardim das Oliveiras — um dos bairros com as casas mais caras da cidade — pensando a respeito do meu apelido: Demônio Branco. Não acho que já tenha recebido um nome que combine mais. Tudo isso tem a ver com a cor do meu cabelo e meus olhos vermelhos, talvez um pouco por conta da minha reputação um tanto... exagerada. Tudo bem que vez ou outra eu realmente precise quebrar alguns ossos, ou arrancar a mão de certos babacas que acham que podem fazer o que quiser na minha cidade, mas juro que tento não partir para violência na maior parte do tempo.

Sei que tirando a estranheza do meu visual as pessoas não me levavam muito a sério. Quem levaria? Eu Tinho apenas 1, 76, meu porte físico é de um garoto magricela e mal dá para notar os músculos no meu corpo. Mas qualquer um que me subestime pela aparência acaba se arrependendo.

O que as pessoas não sabem é que eu não posso morrer. Não importa o que tentem, e já tentaram de formas que não gosto nem de lembrar. Então é, eu não tenho medo de entrar em uma briga. Eu até tento manter o castigo equivalente ao crime. Um assalto em uma loja? É só dar uma surra e entregar para polícia. Um grupo surrando alguém mais fraco? Nesse caso, eu quebro alguns braços e pernas. Agora, um assassino, agressor de mulheres e crianças, ou um estuprador? Esses eu não perdoo. Seus corpos jamais vão ser encontrados.

Talvez isso me torne um pouco hipócrita, considerando que tive de roubar centenas de vezes para não passar fome. mas para mim existe uma grande diferença entre tentar sobreviver e ferir outras pessoas.

Provavelmente é por isso que o Mão de Aço me odeia tanto — também pode ser porque arranquei a mão dele —, eu não deixo seus negócios se aproximarem do meu beco, nenhum deles. Além disso, sei que ele está interessado no hospital. Para que ainda é uma pergunta que me incomoda.

Nossa história de inimizade já se estende por quase uma década, o conheci quando ainda era só eu vivendo naquele hospital abandonado, eram tempos mais simples.

O Mão de Aço — não consigo lembrar de seu nome verdadeiro, maldito apelido! — havia começado como qualquer outro traficante: entrou para uma gangue e começou a vender. É claro que isso não era suficiente, ele foi ambicioso, mostrou serviço, eliminou a concorrência e foi subindo de posto. Até aí, tudo bem. Não acho que alguém na posição dele faria algo diferente. Mas por algum motivo ele cismou que quer o Beco Saint Annie. Chegou a um ponto onde ele começou a mandar seus capangas cobrarem por proteção deles mesmos. Isso foi demais para mim. Sério, eu nem ligava de ter de espantar dois ou três do hospital todos os dias. No entanto, ver aqueles idiotas assustando os moradores, apontando as armas e quebrando as lojas me irritou profundamente.

Eu fui direto até ele, tive de forçar um de seus capangas a me levar, mas lá estávamos nós cara a cara. Eu disse que ele podia continuar fazendo o que quisesse, desde que ficasse longe do meu território — até porque, não tinha como eu estar em cada canto da cidade ao mesmo tempo —, mas ele riu de mim, se vangloriou do tamanho de sua operação e das suas armas pesadas. Acho que ele não deveria ter feiro isso.

Normalmente já é difícil controlar meus impulsos, nessas situações então, me deixo levar. Quando dei por mim, já tinha matado todos os capangas da casa, só restava ele. É claro que eu poderia tê-lo matado ali, quase como se pisasse em uma formiga, mas qual o propósito? Eu já tinha deixado claro quem é que mandava e que ele não podia me vencer. Se o matasse, iria ter de lidar com o próximo cara querendo tomar o lugar dele. Então para garantir que ele tinha me entendido, dei um último presente naquela noite — ou será que tirei um presente? —, achei a maior faca de cozinha da casa e cortei a mão direita dele fora. Nunca me diverti tanto ouvindo alguém gritar, juro. Toda a pose de durão, a fala mansa, o olhar de superioridade... tudo isso se foi assim que ele viu a mão cair no chão. Acho que nenhum de nós se esquecerá daquela noite.

Se deu certo? Por muito tempo, sim. Foi só nos últimos dois anos que seus homens voltaram a ousar se aproximar do beco. Não chegavam a tentar alguma coisa, mas se andavam por lá mesmo assim, para mostrar que estavam de olho em mim.

Vallery acabou se deixando impressionar com as histórias dos roubos mais inusitados. A idiota até mesmo chegou a traficar algumas vezes. Quando eu descobri deixei claro que se a pegasse de novo com alguma droga iria expulsá-la. Pelo menos essa parte ela ouviu. Mas cá estou eu tendo de salvá-la de si mesma. Eu sei que o único propósito disso é me irritar. Se o Mão de Aço não pode me ferir diretamente, é claro que ele vai usar alguém próximo a mim.

Finalmente chego à rua do Senador Flinch, já é quase meio-dia. Esse lugar é bem diferente do resto da cidade. O asfalto não tem um único defeito ou buraco, a calçada segue um padrão de tijolos alaranjados postos na diagonal que terminam em uma grande faixa de grama levando até as casas — uma maior que a outra. Eu não sei qual delas é a certa, mas antes que eu possa pedir informações a algum morador, vejo três viaturas da polícia se aproximando em alta velocidade.

Torço para que passem direto pela rua e sumam no horizonte, mas não. Eles param a menos de vinte metros de onde estou, na frente de uma casa verde de três andares. Eu tenho certeza na mesma hora de que é lá que a Vallery está. Tem mais viaturas se aproximando, ambulâncias também. Nenhum mero roubo chamaria tanta atenção. Algo deu errado.

Me aproximo, preocupado. Minha vontade é de afastar todas as pessoas que estão se aglomerando ao redor da casa, mas não posso. Tenho de manter a calma enquanto penso em um plano decente.

— Uma pena ele ter morrido... — um dos vizinhos comenta, ele ainda está de pijama, acho que saiu correndo par fora assim que ouviu as sirenes.

— Espero que a família dele receba uma boa indenização... — disse a mulher ao lado dele. — Gente-boa, humildes.

Meu coração gela. Alguém morreu.

Pouco tempo depois vejo a Vallery sendo arrastada por dois policiais na direção de uma das viaturas. Seu olhar encontra o meu. Posso sentir o pânico, o remorso, a súplica. Nunca a vi chorar antes, mas agora, ela não consegue parar.

Os capangas do Mão de Aço são levados logo depois. Estão agitados, assustados, mais do que pessoas como eles deveriam ficar por causa de um assassinato. Eles param de resmungar sobre algo que aconteceu lá dentro.

— Sabe o que houve? — pergunto para um dos policiais fazendo anotações.

Tiros. Muitos tiros — ele responde, sem paciência, sequer tira os olhos do bloco de notas.

— Quem morreu?

— O jardineiro, pelo que parece — ele se afasta, sem dar importância a minha presença.

Vou até a viatura onde a Vallery está. Os polícias tentam me impedir, mas me esquivo deles, a essa altura não tem como saber quando poderei vê-la de novo. Por mais que ela me cause preocupação com suas atitudes e seu desejo por aventura, Vallery ainda é uma de nós. Eu não consigo acreditar que ela mataria alguém.

— Me diz que não foi você! — foi quase uma ordem.

Ela me encara, vejo sua boca abrindo, mas sou arrastado para longe antes de ter uma resposta.

— Cai fora, garoto! — um policial me puxa pelo ombro. — Ou vou ter que prendê-lo também — ele acrescenta. 

Sou obrigado a assistir a viatura dar partida e desaparecer no horizonte. Isso me entristece. Quero acreditar que houve algum engano, que ela é inocente. Mas se não foi ela, por que então me olharia daquele jeito? Era arrependimento puro o que eu vi.

Mas espera! Vallery não é assim! Quando ela faz alguma coisa, gosta de se gabar, até demais. Se ela fosse culpada seria bem capaz de sair gritando para os policiais o que tinha feito, não foi o que aconteceu. Isso tem cara de armação! Tem que ser!

Estou cansado demais para correr o caminho todo de volta, mas sei quem preciso ver: o Mão de Aço. Ele finalmente achou uma forma de me atingir, minha aposta é que ele manipulou tudo isso.

Ando pela rua até achar um taxi, na mesma hora estendo o braço para fazê-lo parar. Ele desacelera de forma hesitante, olha para o meu rosto e engole em seco. Eu mostro as notas emboladas e pe só então que ele abre a porta.

— Para onde?

— Eastlake — digo, com determinação.

Era lá onde o desgraçado vivia. Se era para tirar satisfações, tinha que ser com o chefão. Estou cansado de botar seus capangas para correr para manter uma suposta paz. Só quero uma resposta e, se eu não gostar do que eu ouvir, ele já era.

Minha cabeça não parou um segundo durante o trajeto. Quando chego peço para o taxista esperar e deixar o carro ligado. Entrego uma parte das notas para garantir, talvez uns 100 dólares.

Tem dois seguranças na porta, eu os derrubo com um soco em cada. O portão é de aço, cheio de trancas e seria trabalhoso demais tentar destravá-lo, então apenas o derrubo. Um chute, um estrondo, estou dentro.

Cerca de vinte capangas correm na minha direção, todas as armas estão apontadas para mim — rifles, metralhadoras, pistolas, um lança foguete... como eles arranjam isso? —, não me importo nem um pouco, até quero que atirem para justificar um contra-ataque.

— Se quiserem gastar munição, vão em frente — digo, enquanto sigo meu caminho.

Eles continuam apontando as armas para mim, mas não atiram, sábia decisão. Eu entro pela porta da frente, ignoro a decoração cafona do lugar e vou direto até o filho da puta. 

— O Demônio Branco em minha propriedade — o Mão de Aço vem me receber na sala de estar. Ele está com o cabelo bem cortado, roupa social, sapatos caros, uma aliança na mão esquerda e sua prótese de aço na direita. — Será que devo chamar a polícia?

— Sabe muito bem por que vim aqui — meus olhos brilham e o vermelho é refletido na mão de metal. — Você armou para a Vallery hoje. Quero que dê um jeito nisso.

— Acabei de saber o que aconteceu. Trágico, não?

Eu não respondo, então ele continua:

— Meus homens, pobres coitados. Testemunharam um assassinato. E ainda foram presos como cumplices! Que injustiça — nunca vi tanta falsidade antes. — Mas pelo menos eu posso pagar um advogado para ajudá-los, não é mesmo? Será que você pode?

— Então não nega — o sorriso em meu rosto aumenta. — Eu já imaginava que era mesmo sua culpa. Vallery pode ser irresponsável, mas não mataria alguém.

Minha culpa? — ele pergunta, fingindo estar chocado. — A garota sempre aparece querendo se meter em negócio de gente grande. Ela é quem nos procura. Se algo saiu errado, a culpa é dela. Se você não consegue controlar o seu grupinho de delinquentes o problema é seu! Não tenho nada a ver com isso.

— Espero que esteja se divertindo — respondo, meus punhos estão cerrados, me sinto ansioso por um pretexto pata quebrar a cara dele. — Se eu não conseguir resolver isso... vou voltar aqui. E você vai ir para um lugar muito pior do que a cadeia — os vidros explodem por toda a casa, até acho que fritei algumas TVs, mas ele não tira o sorriso da cara.

— Vou esperar ansiosamente — ele responde, apontando para a porta. — Agora dê o fora, tenho mais o que fazer!

Eu poderia matá-lo aqui mesmo, mas não o faço. Por mais que destruir a casa e os capangas fosse aliviar minha tensão, eu tenho problemas maiores. Então saio, mas não sem antes acenar gentilmente para os capangas no quintal.

O taxista ainda está esperando, seus olhos estão arregalados e o dinheiro está intocado. Talvez ele tenha ficado com medo de pegar uma maldição ou algo assim por minha causa, não me importo.

— Para... para onde? — as mãos dele tremem.

— A delegacia 46 — respondo, impaciente.

Fecho os olhos, preciso me acalmar, não posso chegar desse jeito na delegacia. Fora que ainda nem sei como vou fazer para ver a Vallery, mas eu conheço alguém que talvez possa ajudar.

O veículo paro. Saio do carro e o taxista não perde tempo em pisar no acelerador. Quem eu vim procurar á está do lado de fora, segurando um copo de café. O sargento Ramirez é o que posso chamar de aliado. Nós temos uma relação delicada — ele faz vista grossa para mim e os garotos, e eu entrego para ele criminosos de verdade — e ele com certeza já sabia que eu viria procurá-lo.

Bruno Ramirez, um homem de pouco mais de 40 anos, um bom policial e alguém em quem eu confio. Ele é hispânico, tem cabelos escuros e olhos castanhos cansados, parece mais velho do que realmente é, acho que tem a ver com o estresse do trabalho. Normalmente ele sorri quando me vê, mas não dessa vez.

— Sargento! Há quanto tempo! — tento parecer simpático, apesar da preocupação. — Trouxe presentes — tiro as carteiras dos bolsos e estendo a mão. 

— E onde será que conseguiu isso? — ele revira os olhos, mas pega mesmo assim. — Sei o que vai me pedir, nem adianta — estudo sua expressão, está séria demais para o meu gosto. — Sua amiga se meteu com gente da pesada e, alguém morreu. Não tem como varrer para debaixo do tapete.

— Nem me deixou falar — brinco. — Como é que vai saber o que eu quero?

— Você quer vê-la — ele parece ter lido minha mente. — Não vai rolar — ele toma um longo gole do café, depois fez uma carreta. — Você não é advogado, parente, nem mesmo tem uma identificação para o formulário de visitas. Não consigo te deixar entrar sem ter problemas.

Eu baixo o olhar, me sinto péssimo. Poderia tentar arrancá-la lá de dentro. Mas além de todo o risco, isso faria dela uma fugitiva e colocaria todos os outros em risco.

— Além disso, ela está sendo interrogada no momento — ele acrescenta.

Preciso saber se ela fez isso ou não. Não posso sair daqui sem saber!

Ele apenas nega com a cabeça.

— Quantas vezes você já veio até mim precisando de ajuda? — pergunto, com os punhos cerrados. — Me lembro de casos muito piores do que esse! E eu sempre te ajudo, não é?! Até onde sei, conseguiu ser promovido graças a uma dica minha! — não gosto nem um pouco de usar nossa relação para atingi-lo, mas senti que precisava tentar.

— Eu agradeço por isso todos os dias mantendo o pessoal longe daquele beco e dos garotos! — ele grita de volta, algumas pessoas param para olhar, ele se recompõe. — Faça-me um favor, Dymas, vá embora. Isso não é um roubo de esquina. Sua amiga pode ter matado alguém, um homem inocente que estava trabalhando, para o Senador Flinch, ainda por cima! Deixe a investigação seguir seu curso.

— Mas é por isso mesmo, porra! — não consigo me conter. — Se estivesse no meu lugar, não ia querer olhar nos olhos dela e perguntar?!

— Sim, gostaria. E é por isso que lamento, garoto. Volte para casa, descanse, você vai precisar — ele me dá as costas e volta para a delegacia.

Sinto vontade de derrubar as paredes, de causar a maior briga que essa cidade já viu, mas me contenho. A última vez que deixei minha raiva tomar conta... não. Melhor não pensar nisso. Agora eu sou diferente, estou sob controle.

Acendo um cigarro enquanto me afasto, queria que a nicotina pudesse fazer os problemas sumirem, mas não funciona. Bufo, depois chuto uma lixeira para o outro lado da rua

— Talvez eu possa ajudá-lo, vossa majestade — escuto uma voz vindo de trás e um calafrio percorreu o meu pescoço. — Não. Isso está errado. Eu deveria dizer... Príncipe sem reino, não é mesmo?

Tem um homem do meu lado. Ele não estava aqui um segundo atrás, disso eu tenho certeza. Seus olhos são amarelos e o brilho que vem deles me diz para ter medo. Seu sorriso parece falso e seu terno provavelmente custou mais que todos os carros na rua juntos. Só que nada disso é o verdadeiro problema. O filho da puta sabe quem eu sou. 

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