O que é o destino?
O final inevitável de uma jornada independentemente de quais escolhas
foram tomadas? Seria o chamado a grandeza que os mortais tanto buscam? Talvez
os grandes momentos que mudam o curso da história? Ou quem sabe um ser cruel
que brinca com as possibilidades para se divertir?
Para Lúcifer a resposta era bem simples: injustiça. Seu pai havia criado
ele e os irmãos com o propósito de serem os guardiões de toda a criação. E não
importava o quanto fosse difícil ou que coisas terríveis ele tivesse de fazer
em nome da paz, ele nunca desobedeceu. Mesmo assim, quando ele alertou que a
humanidade seria a maior ameaça a prosperidade, isso foi visto como
insubordinação.
Claro que ele não poderia apenas ficar sentado esperando os mortais
provarem que ele estava certo. Lúcifer já tinha se decidido de que eles eram
uma causa perdida e foi por isso que desceu a Terra para mostrar o quão fácil
poderiam ser corrompidos. Foi assim que ele conheceu Lilith.
Apesar de ser uma mortal, ela conseguiu impressioná-lo, A determinação,
o fato de não querer se submeter a vontade de outros, a chama em seus olhos que
almejavam muito mais para a sua vida do que lhe foi imposto e a dor de ser
tratada como maligna por questionar. Lúcifer partilhava muitas dessas
frustrações e aquela que deveria ter sido uma mera peça no seu plano se tornou
sua amiga, e confidente.
Lúcifer chegou a pensar que estava errado sobre os mortais no tempo em
que passaram juntos, mas isso mudou quando Lilith pediu para que ele a
ensinasse a usar magia. Ele não precisou perguntar o que ela pretendia fazer,
não importava. Ela queria poder e, ele já havia visto o que a magia podia
causar ao mundo mortal. O resultado só poderia ser destruição.
Lúcifer gastou alguns anos mortais a ensinando e se apaixonando por
ela. Isso nunca esteve em seus planos. Houve momentos em que ele tentou
dissuadi-la de seu objetivo, mas Lilith nunca iria se contentar com menos do
que um trono. Ela queria ser rainha e faria o que fosse necessário para
conseguir isso.
Na manhã em que ela partiu, Lúcifer retornou ao Paraíso para contar ao
pai o que havia feito. Ele achou que com essa prova, todos veriam que ele
estava certo e pediriam desculpas por duvidar dele. Contudo, o que aconteceu a
seguir estava além dos seus planos. Seu pai ordenou que toda a legião
assistisse a trilha de morte e destruição que Lilith estava causando.
Lúcifer olhou ao redor, estudando o que os irmãos pensavam do caos e,
muitos partilhavam de suas dúvidas quanto aos mortais. Tudo que bastou foi ver
Lilith conseguir conquistar o seu primeiro seguidor fiel para que os anjos percebessem
que a corrupção era um vírus contagioso. Quando a magia começou a ser ensinada
e usada como arma, a legião já estava dividia o bastante para não conseguirem
decidir o que fazer a seguir.
Lúcifer então propôs o extermínio completo da humanidade. Para ele,
esse seria um pequeno custo para obter uma paz duradoura e livre de ameaças,
mas para o seu pai isso era impensável.
Ele estava decepcionado com o filho e não entendia como ele podia
descartar tão fácil as vidas humanas pelos erros de poucos.
Antes que uma decisão fosse tomada o primeiro golpe foi lançado. Mikael
já estava cansado de assistir o irmão mais novo pôr em risco a criação sem
qualquer punição. Ele havia decidido dar um basta no problema enquanto ainda havia
tempo. No entanto, quando Lúcifer revidou, o paraíso se tornou um campo de
batalha. Pela primeira vez anjos estavam divididos em dois lados. Lúcifer foi o
filho favorito por muito tempo e, estava certo quanto ao risco que a humanidade
representava. Então quando ele puxou sua espada, metade do paraíso o seguiu,
com a certeza de que seriam vitoriosos e teriam o apoio do pai assim que ele
percebesse que um mundo sem a raça humana seria melhor.
A guerra não foi equilibrada como Lúcifer esperava. Mikael assumiu o
comando das tropas assim que notou o sumiço do pai e não demorou a organizar um
contra-ataque. Com Rafael a seu lado, eles não só derrotaram os rebeldes, mas
decidiram bani-los de uma vez por todas.
A luta havia acabado. Lúcifer e seus seguidores foram aprisionados no
inferno e o problema parecia ter sido resolvido. No entanto, o fim da guerra
não fechou as feridas, pelo contrário, apenas aumentou o rancor que ambos os
lados sentiam. O estrago já havia sido feito: a humanidade havia sido corrompida
e nada poderia mudar isso.
Mikael até mesmo desceu a Terra para banir pessoalmente Lilith e cada
um que a apoiasse para o inferno, mas isso só havia sido uma solução temporária.
A corrupção e a maldade já estavam enraizadas na humanidade, uma hora ou outra
as guerras retornariam e ele não poderia impedir isso.
Quando ele retornou ao paraíso para perguntar ao pai qual seria o
próximo passo, não conseguiu encontrá-lo em canto algum. Tanto ele quanto
Gabriel haviam desaparecido sem deixar qualquer rastro ou palavras finais.
Mikael viu o restante da legião olhando para ele em busca de respostas, de um
líder e, relutantemente, assumiu esse papel. Ele era um bom filho e eles ainda
tinham um trabalho a fazer.
Enquanto a ordem era reestabelecida no paraíso, Lúcifer se fez o governante
do inferno. O que deveria ter sido sua prisão acabou se tornando um império.
Quando ele descobriu que as almas dos humanos corrompidos chegavam ao
seu domínio, foi como se ganhasse um prêmio por seu mau comportamento. Lúcifer
passou a criar formas de puni-las e torturá-las até que suas essências fossem
completamente distorcidas e se tornassem algo muito mais sombrio: demônios.
Cada alma corrompida se tornava um espelho de suas piores falhas e isso
o fascinou, ao menos por alguns milênios. Quanto mais tempo passava naquele
lugar, seguindo exatamente a mesma rotina dia após dia, mais sua vontade de
sair de lá e se vingar aumentava. Lúcifer não podia perdoar os irmãos pelo que
haviam feito e por terem escolhido aquelas criaturas mesquinhas e gananciosas
ao invés dele, não, algo precisava ser feito. Ele tinha de puni-los e jamais
conseguiria se sentir em paz até que conseguisse.
Escapar do inferno se tornou a tarefa número um, não só sua, mas de
todos os seus subordinados. Todos os dias centenas de ideias surgiam e eram
descartadas. Depois do que pareceram ser eras, foi Lilith quem surgiu com a
solução. Como rainha do inferno e, alguém que queria muito se vingar dos anjos
que a aprisionaram, não havia ninguém que pudesse superar a sua dedicação.
Desde o banimento Lilith havia se tornado uma especialista em Magia
Profana: uma forma obscura e perigosa de fazer com que a realidade se dobrasse
a vontade do usuário. E foi em um de seus rituais que finalmente conseguiu
fazer contato com o mundo mortal e descobrir que eles possuíam adoradores,
muito mais do que imaginavam. Foi daí que surgiu a ideia: eles forçariam o véu
entre as realidades dos dois lados até que pudessem criar uma abertura.
Lúcifer se surpreendeu com aquela ideia, muito mais por não ter
conseguido pensar naquilo primeiro. Mesmo assim, ele embarcou de cabeça naquela
pequena fagulha de esperança. Para sua tristeza, esse feito era muito mais
difícil de pôr em pratica do que havia imaginado. Mesmo com a força de seus
adoradores no mundo humano, não tinham o poder necessário para abrir os portões
do inferno. Ainda faltava algo.
Levou algum tempo para que Lúcifer encontrasse a solução, inúmeras
almas foram torturadas enquanto ele simplesmente buscava inspiração e, foi em
meio a gritos de agonia e pedidos de piedade que ele se lembrou de uma fonte de
poder que poderia finalmente lhe conceder a liberdade: o Alinhamento Milenar.
Um evento cósmico que servia de conexão direta com o sol, a maior fonte de
energia mágica em que alguém poderia colocar as mãos.
Depois de muita espera e preparação, Lúcifer e seus súditos estavam
prontos para o grande momento. Quando os planetas se alinharam durante o sétimo
dia, do sétimo mês do sétimo ano do novo milênio, o mundo foi tomado pelo som
dos sinos badalando, os gritos de alegria e uma canção ecoando no fundo, um
hino profano que convidava o Senhor do Inferno para o mundo mortal.
Quando o portal foi aberto diante do salão do trono, um sorriso se
formou no rosto do rei, ele finalmente estava livre para concretizar sua
vingança. Mas até mesmo seu dia de vitória não saiu como esperado. Os sete
Senhores do Inferno haviam acabado de atravessar quando o portal se fechou,
deixando para trás suas tropas e qualquer chance de vitória.
Lúcifer precisou de alguns segundos para se recompor, estava diante de
seus maiores fiéis entre os homens e precisava da simpatia deles, ao menos por
mais algum tempo. Os membros de seu culto estavam ajoelhados ao redor de um
altar de mármore repleto de sacrificios e símbolos malfeitos. Eles trajavam
túnicas negras e usavam máscaras de animais, todas elas observando atentamente
o seu ídolo no centro do salão.
— Meu senhor, fizemos como o ordenado. Nossa canção o trouxe de volta
para guiar o mundo até sua era de ouro — o líder do culto se levantou, a voz
estava tremula e cheia de admiração.
— Você fez muito bem — Lúcifer se aproximou dele, devagar e acariciou
sua bochecha. — Jamais teria conseguido minha liberdade sem você.
Por alguns segundos todos assistiram aquela cena em pura admiração, o
tão esperado momento em que conheceriam seu líder havia chegado e ele parecia
ser tudo que desejavam, sua presença emanava poder e convicção, sua voz era
inebriante e sua beleza sem comparação. No entanto, quando Lúcifer torceu o
pescoço do líder com apenas um gesto de sua mão, todo o encanto foi perdido e
substituído por um temor e certeza de que haviam cometido um grave erro.
— Os arcanjos logo vão notar a nossa presença — Lúcifer se voltou para os
outros Senhores do Inferno. — Tomem os corpos que desejarem e se livrem do
resto.
Lúcifer não precisou dizer mais nada para que o salão fosse
transformado em um banho de sangue. Os Senhores do Inferno não eram apenas
poderosos, mas também cruéis e se divertiram muito enquanto assassinavam os
membros do culto que haviam os libertado.
— O que faremos agora, meu amor? Os portões se fecharam, não teremos o
poder necessário para derrotar Mikael. — Lilith se aproximou quando o caos se
encerrou, seu rosto ainda estava sujo de sangue e seu vestido desajeitado.
— E acha que não sei disso? — Lúcifer lançou um olhar cheio de fúria
que a fez recuar. — Eu sei o que preciso fazer. Mas até que o momento chegue,
vocês devem se esconder entre os humanos e corromper o máximo de almas
possíveis. Não chamem atenção desnecessária e fiquem atentos para o soar das
trombetas — aquilo não havia sido um pedido, mas sim uma ordem que sequer podia
ser questionada.
— E o que seria? Onde encontrará esse poder? — Lilith se coçava de
curiosidade, jamais havia visto Lúcifer com um olhar tão determinado.
— Chegou a hora de eu ter um herdeiro — Lúcifer não deu abertura para
que a conversa continuasse, com passos lentos e firmes caminhou até a janela da
catedral e saltou.
Enquanto caía seus olhos estavam fechados e sua mente se concentrando
em sentir cada uma das almas que estavam próximas. Poucos segundos antes de se
chocar contra o chão seus olhos se abriram e ao mesmo tempo três pares de asas
surgiram em suas costas e fizeram com que ele alçasse voo.
Ele parou, alto o bastante para que pudesse ver o mundo mortal de cima
e se surpreendeu com a evolução das velhas casas de barro e palha. Seus olhos
observaram o arredor: havia a torre onde seus adoradores realizaram o ritual, o
pequeno riacho que corria logo abaixo e levava até a vila mais próxima, as
grandiosas florestas que cobriam a maior parte do reino e as montanhas
distantes. Mas nada disso realmente chamou sua atenção.
Lúcifer tinha um destino em mente: o castelo do Rei Lenos, o senhor da
Larvênia. Nos poucos segundos em que se concentrou nas almas dos habitantes
daquele reino ele pôde descobrir tudo o que precisava. Por mais rico que fosse,
o rei não conseguia gerar herdeiros. E era exatamente disso que ele precisava.
Ele apreciou cada pequeno detalhe do mundo que o pai tanto amava
enquanto se aproximava do castelo. Entre todas as coisas da criação, eram as
estrelas aquilo que ele mais admirava, talvez porque seu nome fizesse
referência a elas, ou só porque eram as únicas coisas que se comparavam a sua
beleza.
Ele chegou ao castelo, subiu lentamente até a torre principal onde
encontrou o rei na sacada. Era um homem de meia-idade, um guerreiro famoso e
amado pelo povo. Ainda assim estava acordado tão tarde, aflito, deprimido e
cheio dúvidas. Era o estado mental perfeito para uma barganha.
Lenos não o notou de início. Seus olhos pareciam mirar uma das torres
do castelo. Ele trajava vestes confortáveis para dormir, segurava uma taça de
vinho e não havia nenhum sinal de sua coroa. Sua barba era tão escura quanto o
cabelo, ambos pareciam ter sido aparados recentemente. Seus olhos eram verdes
e, apesar da juventude, traziam um intenso cansaço. Lúcifer chegou a se
perguntar se a cicatriz no pescoço seria a única em seu corpo, provavelmente
não.
— Não consegue dormir? — Lúcifer se aproximou lentamente da janela.
— Em nome de deus! O que é isso?! — o rei quase caiu para trás e seu
primeiro impulso foi chamar os guardas, mas ele não conseguiu.
— Se acalme. Não queremos acordar a bela rainha — Lúcifer se sentou na
beirada da sacada e suas asas desapareceram, mesmo assim, o fato de um homem de
longos cabelos brancos e olhos vermelhos surgir a sua frente ainda não havia
sido bem processado pelo rei. — Soube que vossa alteza ainda não foi capaz de
conceber um herdeiro. Deve ser um fardo terrível ser tomado por preocupação
quanto ao futuro de seu reino e o legado que deixará para trás.
— Soube? — o rei conseguiu se recompor e, após analisar a situação com
mais calma conseguiu compreender do que se tratava. — Eu sei quem está diante
de mim: anjo-caído. Sua presença só trará desgosto e pecado. É melhor que
parta. Não tenho interesse em vossa tentação.
— Por que deveria ir? Estou aqui para remover esse fardo dos seus
ombros — Lúcifer sorriu ao ver que o rei não se acovardou, ele gostava de
desafios.
— Como esperar ajuda vinda de ti? Duvido que tenha vindo a mim com boas
intensões.
— Pensei que vossa majestade não se deixasse levar por boatos — Lúcifer
ajeitou o cabelo enquanto encarava o rei com um olhar estranhamente gentil. —
Ou pelo menos é isso que diz a sua corte.
— Por acaso estás a escutar minhas conversas? — o rei perguntou, antes
de tomar um gole em sua taça, mas o vinho de repente parecia ter um gosto
amargo e custou a ser engolido.
— Conhecer as pessoas é o meu trabalho — Lúcifer fez uma esfera de luz
surgir em sua mão. — E eu sei o que vossa majestade deseja, da mesma forma que
sei o que seu irmão está fazendo nesse exato momento nos aposentos dele.
Imagens começaram a se formar na esfera e o rei se aproximou apenas
para ver seu irmão ao lado de seus dois generais mais influentes discutindo
sobre quanto tempo ainda esperariam para que um herdeiro surgisse antes de
tomar alguma providência.
— Mentiras! Meu irmão me ama e jamais tramaria contra mim! — o rei não
podia aceitar o que seus próprios olhos viam.
— Vossa majestade pode ir ver a traição com os próprios olhos, se assim
desejar — Lúcifer deu de ombros. — Mas me pergunto de que lado o povo ficaria
se isso se tornasse uma questão pública. Seu irmão tem dois herdeiros que podem
assegurar a linhagem real, já vossa alteza...
— Eu sou o rei! Eles não podem virar as costas para mim depois de tudo
que fiz por esse reino!
— Mas vão — Lúcifer desfez a esfera. — Seu irmão deseja o trono muito
mais do que ama você. A cada dia que passa ganha mais apoio e vai chegar a hora
em que eles vão vir atras de você, da sua rainha e de qualquer um que tente
protegê-lo — o arcanjo fez uma pausa e o rei aguardou atentamente suas próximas
palavras. — Estou lhe oferecendo uma forma de impedir isso. Sei que é uma
decisão difícil, mas cabe a vossa majestade decidir o destino do seu reino.
— E o que o Diabo ganharia com o meu triunfo? Minha alma? As riquezas
do meu reino?
— Não, não tenho interesse em macular sua alma. E não preciso de
tesouros — Lúcifer saltou da bancada e seus olhos se voltaram para a rainha
adormecida em sua cama, apenas a alguns metros de distância. — Estou propondo
dar a sua rainha um filho meu. Um herdeiro imortal, que trará a Larvênia uma
era de glória e que terá a força para destruir quaisquer inimigos que surjam no
seu caminho.
— O que está sugerindo é uma abominação! Um sacrilégio! Não posso sujar
a alma de minha esposa com um pecado tão grande! Eu a amo com todo meu coração!
— o rei balançou a cabeça negativamente sem acreditar no que estava ouvindo.
— Seu amor por ela vale todo seu reino? Se for esse o caso, posso dar a
vocês uma passagem segura para longe daqui e farei a mesma proposta ao seu
irmão assim que ele subir ao trono.
— Eu... — Lenos não conseguiu terminar a frase, ele mal podia acreditar
que estava ponderando sobre aquela proposta insana. — Se for aceitar tamanha
loucura, desejo saber exatamente com o que estou concordando — seus olhos
encaravam o chão, repletos de vergonha.
— Não esperaria menos de um rei tão sábio — os olhos de Lúcifer
brilharam, iluminando toda a sacada. — Proponho um pacto padrão: riquezas,
prosperidade e uma longa vida para vossa majestade e seu reino, mas ao invés de
tomar sua alma em troca, desejo apenas o seu consentimento para gerar um filho
com sua rainha e que você se encarregue da segurança da criança até a idade
adulta.
— Não consigo entender... o que você ganharia com um filho? E por que
escolheu justo meu reino entre tantos outros mais ricos e poderosos?
— Eu poderia mentir para você, mas posso ver no fundo de sua alma que
também possui um grande desejo por poder e que está disposto a fazer o que for
preciso para mantê-lo — de certa forma, Lúcifer parecia admirar o rei. — Foi
por isso que o escolhi. Quero que meu filho cresça em meio a uma realeza em
expansão e que se torne um conquistador, não só do mundo humano — ele fechou os
olhos e em sua mente podia ver claramente o quanto seu filho seria temido aonde
quer que fosse. — Isso será parte de seu legado, Rei Lenos, seu nome jamais
será esquecido.
— Está me pedindo para condenar todo esse mundo ao inferno pelas mãos
dessa criança? Que desafie meu deus? Não sei se posso fazer isso...
— Eu posso garantir que seu deus não se importa, não mais. Quando a
guerra chegar a seu fim, eu serei o novo senhor não só do inferno e do paraíso,
mas também do mundo mortal — seus olhos miraram o céu cheios de confiança. —
Receio não termos tempo para continuar esse debate. Em breve meu odiado irmão
virá atrás de mim e me jogará novamente ao inferno, seus portões não poderão
ser abertos por pelo menos mil anos. Então está na hora de tomar sua decisão.
Mas devo lembrá-lo, vossa majestade pode escolher aceitar ou não, mas como
disse, seu irmão está logo ali e duvido que ele hesitaria.
— Pois bem — o rei voltou a encará-lo. — Você está certo quanto a uma
coisa: vou sempre fazer o necessário para proteger meu reino. Mesmo que isso me
embrulhe o estômago e condene minha alma — ele fez uma pausa pensativa. — Quero
que acrescente uma cláusula ao acordo: meu irmão e seus filhos devem morrer.
Não quero passar cada momento de minha vida esperando um ataque vindo do meu
próprio sangue e não posso tomar medidas contra ele, então preciso que eles
morram de forma discreta.
— Pode considerar feito. Basta assinar aqui — um pergaminho e uma pena
surgiram nas mãos do ei e Lúcifer sorriu, vitorioso.
Enquanto o rei assinava o pergaminho o corpo de Lúcifer começou a se
modificar até estar em total semelhança com o rei que o encarava sem entender.
— Sem suspeitas, não é mesmo? Não queremos assustar a doce rainha — ele
começou a caminhar para dentro dos aposentos. — Acho melhor vossa majestade
fazer um passeio noturno, duvido que vá querer assistir o que está por vir.
Lenos engoliu em seco, mas fez como ordenado, com passos apressados
saiu de seus próprios aposentos. Enquanto isso, Lúcifer caminhou até a cama
onde a Rainha Amélia estava dormindo e admirou sua beleza antes de finalmente
decidir acordá-la.
— Meu rei, aconteceu algo? — a rainha despertou com a carícia de
Lúcifer em sua bochecha, sua mente ainda estava turva de sono.
— Sim. O meu desejo por ti tomou conta de meu coração e sinto que é
chegada a hora de concebermos o nosso primogênito — sua voz havia saído
sedutora e cheia de uma paixão que fez o coração da rainha se acelerar.
— Depois de tantos anos, ainda há esperança em vosso coração? Eu temo
que não tenhamos sido abençoados com o dom de trazer crianças a esse mundo — a
rainha desviou o olhar, pensar sobre aquilo sempre a fazia se sentir triste e
falha.
— Não se preocupe, tenho certeza de que essa noite isso vai mudar — os
olhos dele emitiram um intenso brilho vermelho e logo em seguida ele tomou os lábios
da rainha em um beijo repleto de uma falsa paixão e desejo carnal.
Naquele momento a rainha havia sido tomada por um sentimento de puro
prazer e êxtase que nunca havia vivenciado com seu marido, seus corpos se
uniram em uma dança incansável em busca de satisfação, suas vozes se tornaram
uma melodia de desejo e excitação e, quando o clímax daquele momento finalmente
chegou os olhos da rainha se abriram e emitiram o mesmo brilho vermelho que
Lúcifer trazia em seus olhos, naquele momento ele soube que havia cumprido seu
objetivo.
— Isso foi... melhor do que eu imaginei — Lúcifer sorriu, observando a
rainha ainda ofegante e surpresa com tudo que havia acontecido. — Mas temo que
seja a hora de partir, então durma, minha rainha. Você precisará de toda sua
força para o que está por vir — mais uma vez ele acariciou o rosto de Amélia e
com isso fez com que ela voltasse a cair no sono.
Com uma expressão de pura satisfação o Rei do Inferno se levantou e
caminhou até sacada, sua aparência retornou ao normal, quando chegou a beirada
suas asas ressurgiram e antes de alçar voo olhou para a rainha adormecida por
mais alguns instantes, sentindo um estranho peso no coração. Mesmo assim, ele
partiu rumo aos céus, sabendo que pelo bem da criança, não poderia passar mais
um minuto sequer ali.
Sua preocupação se provou real quando viu rastros de luz seguindo em
sua direção ele sabia o que aquilo significava: uma tropa celestial não
demoraria a alcançá-lo, mas isso não o assustou, pelo contrário, o fez sorrir
em expectativa.
Lúcifer parou, já estava longe o bastante do castelo. Não precisou
esperar muito para que fosse cercado por duas dúzias de anjos. Todos eles
trajando as armaduras de batalha em tons cintilantes de dourado, Espadas e
escudos emanavam poder celestial e apesar da vantagem numérica, eram eles que
estavam tremendo.
— Não deveriam ter sido mandados atrás de mim. É a última chance de os
peões recuarem antes que eu os destrua — Lúcifer os advertiu, mas eles não
recuaram.
O Rei do Inferno abriu os braços em um convite que não foi recusado. Os
anjos partiram para o ataque ao mesmo tempo torcendo para que pudessem encerrar
a batalha o quanto antes, mas Lúcifer desviou coando para cima em um movimento
espiral. O arcanjo olhou para baixo, estendeu suas mãos e então lançou as
primeiras fagulhas de fogo negro.
Seis dos anjos foram atingidos no primeiro instante, de início não se
intimidaram pelas chamas, afinal suas armaduras deveriam resistir a um ataque
tão simples. Não demorou nem um minuto para que o pânico se instaurasse entre
eles. As chamas negras criadas com magia profana se espalharam e, não estavam
destruindo apenas os seus corpos físicos, a própria essência celestial daqueles
anjos estava entrando em combustão.
Os gritos de horror fizeram o restante hesitar, mas eles tinham ordens
que não podiam ignorar e, só por isso, voltaram a atacar. Dois deles vieram
junto com suas espadas, Lúcifer bloqueou as duas sem sofrer quaisquer
ferimentos nas palmas das mãos e logo em seguida s arremessou para o alto e
então fez com que raios os atingissem com tamanha intensidade que os dois
explodiram.
— Eu avisei — Lúcifer deu de ombros, satisfeito em ver que sua força
continuava imensamente superior à dos anjos comuns.
Nem mesmo os elmos que cobriam os rostos dos sobreviventes podia
esconder o medo que estavam sentindo. A última esperança era um ataque em
conjunto com fogo celestial, mas mesmo quatro anjos pouco puderam fazer contra
o Rei do Inferno, que apenas parou o ataque com uma das mãos antes de lançar
mais rajadas de fogo negro contra eles.
A batalha havia acabado e Lúcifer se sentiu um pouco desapontado, ele
esperava um desafio maior do grupo que supostamente deveria levá-lo de volta ao
inferno. Contudo, esse sentimento de repente se tornou aflição. Ele olhou para
o alto e viu um rastro de luz muito mais intenso se aproximar. Seu irmão mais
velho estava a caminho e, em toda a criação era o único ser que ele temia.
Quando Mikael finalmente o alcançou, a energia em volta dele começou a
se dissipar até revelar uma armadura azul-cintilante, três pares de asas
douradas e uma espada em chamas, poderosa o bastante para rasgar os véus da
realidade. E como de costume, seu portador se mantinha com um olhar de
superioridade.
— Vejo que o tempo no inferno não lhe enfraqueceu, meu irmão — Mikael o
analisou de cima a abaixo, apenas para ter certeza de que não via nenhuma
ameaça vinda do irmão. — Mesmo assim, continua inferior.
— Não acha que já fui punido por
tempo o bastante?
Lúcifer estendeu sua mão e nela sua arma celestial surgiu: Aurora das
Trevas, uma espada negra conhecida por dilacerar a alma daqueles feridos por
sua lâmina.
— Não foi. Você condenou toda a criação e por sua causa o nosso pai foi
embora. Jamais será punido o bastante.
— E graças a mim, você é o líder. Não era isso o que sempre quis? —
Lúcifer vociferou. — Eu me lembro de como você gostava de mandar em todos nós,
como apontava nossas falhas e fraquezas... como se ninguém pudesse estar à
altura do primeiro filho!
— Acha que eu queria isso? Assumi o comando porque não tive escolha!
Tudo que eu sempre quis foi servir ao nosso pai! — Mikael quase nunca
demonstrava emoções, mas Lúcifer conseguia trazer sua raiva à tona. — Se
dependesse de mim, iria destruí-lo aqui e agora! Para a sua sorte, ainda
preciso de você, para cumprir o que foi escrito!
— Tem certeza? Porque essa será sua última oportunidade — Lúcifer provocou,
mesmo incerto de suas chances. — Muito em breve terei o poder que preciso para
derrotá-lo. E quando esse dia chegar você vai se arrepender de não ter me matado
enquanto podia!
Lúcifer partiu para cima do irmão e tentou golpeá-lo com sua espada,
mas sua investida foi facilmente bloqueada. Mikael o arremessou para longe,
como se o ataque não fosse capaz de fazer algo além de entediá-lo. O Rei do
inferno era orgulhoso demais para ser tratado assim, então voltou a atacar,
cada golpe tinha mais fúria que o anterior e, cada vez que Mikael bloqueava um
deles com sua espada o choque entre os golpes fazia todo a terra tremer.
Lúcifer se afastou, cego de raiva. Ele estendeu a mão aos céus e atraiu
todas as rochas flutuando no espaço que conseguiu. Se tivesse de destruir meio
mundo para acabar com o irmão, para ele seria um preço pequeno a pagar.
O céu se encheu de pontos flamejantes vindo a uma velocidade
assustadora. Mikael apenas riu. Com um corte de sua espada, cada uma das rochas
foi destruída antes mesmo que atravessassem a atmosfera.
— Imprudente, egoísta e incapaz de pensar nas consequências — Mikael
balançou a cabeça negativamente. — Você foi sempre assim. Eu alertei o nosso
pai, mas ele não me deu ouvidos. Uma pena, teríamos evitado muito sofrimento.
Lúcifer pensou em responder ao irmão de diversas formas, mas não teve
tempo de concluir qualquer frase. Mikael surgiu na frente dele e o desarmou com
facilidade. O soco no estomago a seguir fez com que o Rei do Inferno não
pudesse pensar em nada além da dor. Ser arremessado para baixo com um chute
logo em seguida só piorou isso.
Uma cratera foi aberta no local onde ele caiu. Lúcifer tentou se
reerguer, mas o irmão já estava em cima dele, pisando em seu peito e o
encarando com nojo.
— Acha mesmo que eu teria permitido que você gerasse aquela abominação,
se não fosse parte das escrituras?
— Como sabe...? — Lúcifer estava perplexo, todo aquele plano dependia
de sua discrição.
— Você é mesmo um tolo, irmão. Aquilo que você acabou de criar, vai ser
de fato o responsável pelo fim dos tempos, mas não como você pensa.
Mikael então fez correntes luminosas surgirem e prenderem o irmão pelos
braços e pernas, por mais que Lúcifer se debatesse ou tentasse usar seus
poderes, não conseguia. Tudo que lhe restava era assistir seu irmão caminhar
lentamente até suas costas e sentir quando a espada flamejante tocou suas asas.
Um urro de dor ecoou por toda a região enquanto Mikael destruía as asas
do irmão. Lúcifer sabia que jamais as teria de volta, as chamas celestiais
destruíam mais do que a forma física, elas também eliminavam a essência do que
tocavam, nem mesmo um arcanjo era imune a esse tipo de ferimento. Quando aquilo
finalmente acabou, Lúcifer sequer tinha voz para gritar.
— Eu sei que você tinha grandes planos para aquilo, acredito que
desejava que ele fosse um conquistador entre os mortais e que seu nome fosse
lembrado para sempre. Mas deixe me contar uma coisa: não vai ser assim — Mikael
sussurrou no ouvido do irmão apreciando a forma vulnerável e ferida em que ele
se encontrava. — Onde quer que aquela abominação vá, destruição e morte irão
junto dela. Aquela criança será temida, odiada e excluída por todos. Ela jamais
terá um único dia feliz em sua vida. E quando ela cumprir o seu papel, será o
seu fim.
— Do que... do você está falando? — Lúcifer precisou de todo o seu ódio
para lhe dar forças para se erguer. — Meu filho vai ser o ser mais poderoso que
esse mundo já viu! Ele vai ser a sua destruição, Mikael! Eu juro pelo nosso
pai!
— Você sempre foi um bebê chorão, Lúcifer. Incomodou tanto que destruiu
nossa família — Mikael juntou suas mãos e então todo o chão foi tomado por uma
intensa luz branca. — Dessa vez, nada de inferno para você. Vou lhe dar o
tratamento especial que tanto deseja: uma prisão só sua. Não importa o que você
tente, jamais conseguirá sair dela, não até que a hora chegue, assim como está
escrito.
Mikael passou a recitar um cântico sagrado. Enquanto fazia isso uma
flor de lótus de sete pétalas começava a surgir em volta de seu irmão que
gritava, ameaçava e fazia promessas de vingança, mas era simplesmente ignorado
enquanto cada uma das pétalas se fechava a sua volta.
— Enquanto você estiver nessa jaula vai sentir a dor de cada uma das
almas corrompidas no inferno. Não vai haver um único dia em que você não vai
ter preferido a morte e mesmo assim, não vai poder morrer — Mikael profetizou
enquanto a última das pétalas se fechava.
— Irmão, por favor, não faça isso! Estou te implorando! Você já provou
que é o mais forte, não precisa disso! — Lúcifer gritou em desespero, o medo
estava falando mais alto até do que seu orgulho.
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