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Herdeiros do caos - O Lamento do príncipe capítulo 1

 Cara, eu odeio o verão.

 

Sei que tem pessoas que adoram o calor, atividades ao ar livre e dias mais longos, mas eu não sou uma delas. Talvez por eu ter crescido em um lugar de clima frio, ou porque eu me sinta irritado no calor ou pode ser o suor escorrendo que me incomoda, não importa, sempre sofro nessa estação.

Estou nesse mundo há quase mil anos e se até hoje não aprendi a suportar climas quentes, não acho que isso vai acontecer algum dia. Pata piorar os verões da América são piores do que eu estava acostumado na Europa, até mesmo quando chove eu me sinto mais abafado do que refrescado.

Até em Seattle, onde vivo atualmente há cerca de dez anos, ainda não me acostumei com a temperatura. Gostaria que esse maldito hospital tivesse energia elétrica, aí eu poderia arranjar um ar-condicionado.

Sinto falta da Larvenia, meu reino natal. Na região onde cresci havia neve a maior parte do ano, mesmo no verão eu não chegava a suar muito e isso considerando que eu tinha de caçar, cortar lenha e treinar esgrima com o meu guardião. Queria poder voltar, mas... meu reino não existe mais, por minha culpa.

Abro meus olhos e sou ofuscado pela luminosidade. Algum infeliz abriu as cortinas — que são na verdade lençóis improvisados nas janelas —. É isso o que eu ganho por viver com outras pessoas! As vezes chego a sentir falta de quando era só eu vivendo aqui no Hospital.

Minhas bochechas já estão quentes, estou até suando. Bufo, depois coloco a mão na frente do meu rosto e me levanto para fechar a maldita cortina, mas não que isso resolva muito. Não vou conseguir voltar a dormir, tudo que tenho são mais alguns minutos longe da luz do sol para meus olhos se acostumarem.

— Porra! — não consigo evitar o palavrão, geralmente não é assim que começo o dia. — Vou matar quem abriu essa merda!

Apesar de eu ter gritado alto o bastante para qualquer um nesse andar ouvir, não recebo qualquer reação. Isso é estranho. Esse hospital nunca fica silencioso desse jeito. Tem sempre alguém discutindo, correndo, concertando alguma coisa que quebrou ou as vezes apenas rindo.

Olho para o relógio no meu pulso — o vidro continua cheio de riscos e o trincado no canto esquerdo está ficando maior — e vejo que ainda são sete e quinze. Pode parecer cedo, mas não aqui. Nesse horário as coisas já estariam se agitando. Z e o Duncan já estariam discutindo o que comer no café da manhã e a Vallery provavelmente estaria cantando alguma das músicas estranhas que ela gosta.

Bocejo algumas vezes, esfrego meus olhos e decido afastar o sono de vez. Me alongo, primeiro meus braços, depois minhas pernas. Normalmente eu também faria algumas flexões para me aquecer, mas hoje estou com pressa.

Saio do quarto e checo o quarto em frente, que pertence ao Z, como era de se esperar, está vazio. Apesar de poder ter esse quarto só para ele, todas as noites o Z leva o colchão para o meu e dorme perto da minha cama. Ele não comenta sobre os pesadelos, mas quando acorda gritando no meio da noite e me vê, ele respira aliviado e depois volta a dormir. Quero falar com ele sobre isso, mas ainda não sei como. Quase mil anos e eu ainda não sei lidar com crianças.

Checo o resto do corredor, nada. Eles devem ter mesmo saído, o que quer dizer que estão arrumando problemas. Desço as escadas, mas não perco meu tempo checando os quartos dos outros andares, porque nós não os usamos. Somos apenas cinco e é muito mais fácil ficarmos perto uns dos outros.

Chego ao refeitório, minha última esperança de encontrá-los ainda aqui, mas só vejo um monte de pacotes de biscoitos jogados em cima da mesa. Eles saíram às pressas. Não é a primeira vez que um dos meus amigos faz isso. Só que nunca aconteceu de todos eles sumirem no mesmo dia.

Estou com um pressentimento ruim e, se tem algo que eu aprendi nesses meus séculos de vida é ouvir isso.

Eu queria muito um banho, mas não posso perder tempo com isso agora. Subo as escadas de volta aos dormitórios correndo, apenas para pegar meus sapatos e meu maço de cigarros.

Enquanto ando pelos corredores vazios só consigo pensar em como o silencio faz esse lugar parecer maior. O hospital — que tem o mesmo nome da rua: Saint Annie — já estava abandonado quando o encontrei. A história desse lugar envolve uma sequência de tragedias que abaram fazendo com que entrasse em falência. E ele com certeza não seria minha primeira escolha para morar, mas melhor aqui do que continuar sem ter um teto, principalmente com as crianças por perto.

Sinceramente? Nunca achei que diria algo assim. Por muito tempo fui só eu. Até tive alguns amigos aqui e ali, mas nunca tive pessoas perto de mim por mais de alguns anos e muito menos crianças que estou basicamente criando. Então é, eu não posso mais tomar decisões só pensando em mim. Tenho que tentar protegê-los o melhor que posso, embora eu não seja o melhor dos exemplos, já que fui eu quem os ensinei a roubar.

Não é que eu goste de tirar dinheiro dos outros, mas nós temos que sobreviver e, quando se tem cabelos brancos, olhos vermelhos, nenhuma identidade, conta no banco, número social ou comprovante de residência, não é fácil conseguir um emprego. Também não é como se eu pudesse levá-los para a escola e dizer: oi, eu não sou o pai, parente ou guardião legal, mas estou aqui para deixar esses quatro pivetes, obrigado.

Vivemos a margem da lei, aprontando aqui e ali, na maioria das vezes de forma discreta. No entanto, a Vallery e o Z não são chegados em sutileza, eles têm um apetite perigoso por golpes maiores e arriscados, embora por motivos bem diferentes. E é com esse pensamento que finalmente deixo o hospital

Enquanto caminho já trato de acender o primeiro cigarro do dia. Não que ele realmente tenha algum efeito sobre mim, a rotina mal fica no meu sistema, mas me ajuda a acalmar. É uma mania que acabei adquirindo durante a segunda grande guerra.

Olho para o início da rua, bem na esquina. Lá é onde fica a loja de tortas da Dona Dalma o meu lugar favorito da cidade, apesar de a dona ser uma chata. Conheço ela desde que cheguei em Seattle e tenho aguentado os sermões dela por quase uma década.

Apesar do horário ela já está do lado de fora, limpando as vitrines. Como de costume ela está usando uma blusa florida e uma calça de ginastica, embora ela sempre arranje um motivo ou outro para não fazer suas caminhadas. O cabelo dela é encaracolado e tingido de castanho, sempre amarrado com uma faixa colorida, jamais a vi repetindo a mesma cor dois dias seguidos. Com sorte deve ter visto meus amigos e pode ter algumas pistas.

Apresso meus passos. Ela me vê e balança a cabeça negativamente. Eu bufo, não adianta dizer a ela que os cigarros não podem me fazer mal, ou que eu não fumo perto dos meus amigos, ela sempre reclama. Sei que o marido dela fumava muito, mas não foi isso que o matou, ela deveria relaxar.

— Tão cedo e já está com essa porcaria na boca? — e a primeira coisa que ela diz.

— Bom dia para você também — paro perto do poste de luz, a dez metros de distância dela, só para garantir.

— Se continuar assim, vai fazer mal para aqueles garotos!

— Sabe que não fumo perto deles.

— Ainda carrega a fumaça, suas roupas sempre fedem.

— Talvez, mas não ouvi nada sobre fedor fazer mal à saúde — dou de ombros. — Eu termino isso para você. Espere só um pouquinho — aponto para a janela.

— Não seja ridículo! — ela franze o cenho e me encara. — Faz mais de vinte anos que limpo essa vitrine, não vou parar agora! Eu cuido da minha loja! — apesar de querer mostrar determinação, sinto o cansaço na voz dela.  

— Justamente por fazer isso há tanto tempo que deveria pensar em se aposentar — acabo decidindo que o cigarro não vale tanto a minha atenção, o apago encostando no poste e o jogo na lixeira logo ao lado. — Ou pelo menos poderia contratar um assistente.

— E por que eu faria isso? — ela me entrega o pano e o spray com produto de limpeza, logo depois se senta na cadeira de balanço que sempre fica na frente da loja. — Você e os meninos já me ajudam o bastante. É muito mais barato pagar vocês com tortas.

Nós dois rimos. Apesar da implicância, gosto da companhia dela. É uma das poucas pessoas nesse mundo que posso chamar de amiga.

— Por falar nos garotos... — começo a limpar, primeiro onde ela não alcança e depois vou descendo com o pano. — Viu algum deles hoje?

— Vi o Duncan e o Z passarem pela rua mais cedo, eles pareciam agitados — ela levou a mão ao queixo, pensativa. — Eles disseram alguma coisa sobre o Obelisco Espacial. Pareciam animadinhos demais para o meu gosto.

— Vão aprontar alguma, certeza — solto o ar lentamente, me sentindo uma vitrola quebrada.

Na hora de arrumar problemas eles formavam uma dupla imparável. Z sempre surgia com alguma ideia maluca e arriscada e, apesar de ser três anos mais velho, o Duncan sempre acabava sendo persuadido a ajudá-lo.

— Você precisa ser mais firme com esses garotos — ela diz, como se fosse simples. — Se continuarem assim, vão acabar como a Vallery.

Ouvir isso acaba com qualquer resquício do meu animo. Eu não exagerei quando disse que ela tem um apetite enorme para golpes grandes. O que fez com que ela começasse a se aproximar das pessoas erradas e a parar de ouvir quando eu digo que é uma má ideia fazer algo. Não é o tipo de pensamento que gosto de ter pelas manhãs.

— O que posso fazer? Não sou o pai deles — paro de limpar e olho de volta para ela, sério. — Eles sabem muito bem o que estão fazendo e os problemas que podem arranjar, mesmo assim continuam aprontando!

— Depois de quase dez anos, acha que consegue me enganar, garoto? — ela pergunta, uma das sobrancelhas está levantada, chego a sentir vontade de rir. Por causa da minha aparência ela esquece que sou muito mais velho e tenho muito mais experiencia. — Pode até andar por aí bancando o durão, deixar as pessoas te chamarem de Demônio Branco, ficar encarando com esses seus olhos vermelhos, mas eu sei bem que você tem um coração mole aí no fundo. Aqueles garotos são seu ponto fraco, sua família. Goste você ou não.

— É, é. pode sonhar com isso — tento parecer desinteressado, mas acho que não funciona, o sorriso dela aumentou. — Eles só estão comigo porque aconteceu da gente se esbarrar. E só levei eles para o hospital porque não consigo arrumar aquele lugar sozinho!

— Nem você acredita nisso — ela tem a expressão de alguém que acabou de vencer um jogo e isso me irrita. — Quanto antes aceitar que os ama, melhor — tem algo no olhar dela, talvez nostalgia. — Não vai querer se arrepender depois, não é? A vida nunca dura tempo o bastante.

Sinto vontade de dizer que ela está errada, pelo menos no meu caso. Já vivi muito mais do que gostaria e sei mais que qualquer outra pessoa o quanto a vida humana pode sumir rapidamente diante dos olhos. Acho que esse é um dos motivos de ser tão difícil para mim aceitar quando gosto de alguém.

— Talvez esteja certa — dou de ombros.

Eu encaro a vitrine enquanto penso a respeito. Não tem mais nenhuma mancha, embaçado, sujeira ou inseto preso no vidro — embora ainda tenha alguns arranhões —, não há mais nada que eu possa fazer aqui.

— Melhor eu ir atras deles.

— Se me ajudarem nas entregas mais tarde, posso separar algumas tortas para vocês — ele diz, enquanto devolvo o pano e o spray.

— Espero que separe alguma de framboesa — não é meu sabor favorito, mas sim o do Duncan. Imaginar o sorriso dele me anima, mesmo quando estou bravo. — Até mais tarde. Espero que não se esforce. Depois não quero ouvir reclamando que sua coluna está doendo.

Eu não espero uma resposta. Já perdi tempo demais por aqui. Aqueles pestinhas já devem ter colocado em prática seja lá qual for o plano idiota da vez.

Começo a correr na direção do parque. É um dos pontos que atraem mais turistas e um dos nossos preferidos para roubar. Aproveitar a distração das pessoas para tirar uma grana é o básico. As vezes deixo o Duncan ou o Z bancar o guia turístico e em troca ganhamos alguns trocados. Mas o que eu prefiro é me aproveitar de multidões para puxar as carteiras dos bolsos tirar algumas notas e devolver antes de ser visto. 

Em um dia bom conseguimos algumas centenas de dólares, mas isso só quando eu estou lá para impedir que as coisas saiam do controle. Z já foi pego algumas vezes e por pouco não tomou uma surra.

Sacudo a cabeça, melhor não pensar no pior cenário. Vou focar em correr sem esbarrar em ninguém ou ser atropelado. A rua Saint fica a alguns quarteirões do parque central, ela termina em uma das orlas do Lago Oeste. Era um dos atrativos do hospital, antes do acidente e da falência. Geralmente o percurso leva uns vinte minutos, mas quando estou com pressa consigo em cinco.

Minha velocidade e minha força tendem a aumentar com a necessidade, mesmo agora com meus poderes suprimidos. Gostaria que fosse só isso, mas não, eu sou perigoso e até mesmo agora me pergunto se estou fazendo o certo vivendo entre as pessoas comuns.

Consigo ignorar o sol queimando minha pele e o suor que já enxarcou minha camisa, mas estou aqui diante da frente do parque. Nem preciso me esforçar muito para achar uma multidão agitada.

À medida que me enfio no meio dela começo a ouvir a voz do Duncan, mesmo gaguejando ele consegue ser um bom showman. Percebo que ele está usando o golpe do monte de três cartas, que eu não deveria ter ensinado para ele. O cabelo dele está enorme, mas grande parte é suprimida pela alça do fone de ouvido que ele usa na maior parte do tempo. O que me irrita mesmo é ver o Z — esse ser de pouco mais de um metro e trinta — se esgueirando ente as pessoas para pegar as carteiras. Ele está usando uma camiseta vermelha, jeans surrados e chinelos. Qualquer um que olhe para ele vai achar que é só uma criança passeando no parque.

Eu paro e assisto o pestinha enfiar os dedinhos na bolsa de uma senhora, ele consegue pegar a carteira e logo depois se vira na minha direção, engole em seco, mas depois ri. Ao invés de parar, ele vaia atrás do próximo: um homem alto, musculoso, careca e que eu particularmente preferiria não irritar. O Z tenta puxar a carteira dele, mas o homem dá um passo para trás no mesmo momento. Ele sente a mão do Z no bolso dele e olha para tras, furioso. Z arregala seus olhinhos puxados e depois faz a única coisa que poderia: corre.

Pronto, já é tarde para impedir a confusão. O homem corre atras dele empurrando quem fica no caminho. O Duncan então puxa todo o dinheiro da mesa improvisada e, ao invés de correr em outra direção, vai atras do Z, o que deixa a multidão furiosa por perder o dinheiro. Deixo meus olhos brilharem, isso consegue fazer com que eles engulam em seco e desistam de correr atras dos pestinhas. O problema é que eu acabo deixando eles ganharem distância demais e aquele careca pode acabar os alcançando antes de mim. Eu até acho que eles merecem uma surra, mas não posso arriscar que eles sejam levados até a polícia. Eu tenho uma promessa a cumprir.

Eles estão correndo para fora do parque, chegam à saída principal e, poderiam se dividir e dificultar a perseguição como eu já ensinei, mas não, o Duncan pega a mão do Z e o puxa para a direita. O careca não está tão longe, tem cerca de dez metros entre eles, então eu apresso o meu passo.

Meus amigos estúpidos correm por três quarteirões antes de entrar em um beco, o homem não os perdeu de vista em nenhum momento e até desacelerou o passo, sabendo que eles não têm para onde fugir.

Ladrõezinhos safados! Vou dar uma surra em vocês para aprenderem a não pegar o que é dos outros! — escuto ele gritar.

Alcanço os três bem a tempo de ver meus amigos encurralados contra as grades que dividem o beco e, o careca levantando o braço para o primeiro golpe. Me apresso e consigo interceptá-lo antes que atinja o Duncan.

O careca se surpreende e me encara, furioso. Z sorri ao me ver, já o Duncan apenas abaixa a cabeça e se encolhe. Empurro o homem alguns metros para longe, deixo meus olhos brilharem para afugentá-lo, mas parece que dessa vez não vou poder resolver sem violência.

— O que é você?! — já estou cansado dessa pergunta, porque eu não tenho a resposta.

— Melhor deixá-los em paz, amigo — peço. — Eu mesmo vou cuidar deles — olho para os dois e eles caminham timidamente na minha direção, até ficarem atras de mim.

De jeito nenhum!  Eles tentaram me roubar! Merecem apanhar!

Tenho de admirar a coragem do careca, ele dá outra investida e, mesmo após eu empurrá-lo de novo ele não parece querer se render.

— Eles nem conseguiram. Para você ver os ladrões de merda que eles são! — olho para os dois, torcendo para que percebam o quanto estou desapontado. — Não pode deixar as coisas como estão? Sua carteira ainda está aí, com você.

— Não mesmo! Ninguém fode comigo e sai andando numa boa! — ele vocifera, mas me faz rir com a ambiguidade da frase. Isso parece irritá-lo ainda mais.

— Quer mesmo fazer isso? — pergunto, enquanto me alongo.

De novo é ele quem dá o primeiro golpe. Vem para cima de mim com tudo, tentando acertar um gancho de direita, mas eu desvio para o lado. Ele tenta novamente e eu continuo a me esquivar. Não quero machucá-lo — não quando ele tem motivos para estar irritado com os dois idiotas —, mas não tenho escolha além de deixá-lo extravasar a raiva e se cansar.

Apesar da diferença de tamanho e ele aparentar ter muito mais força física, essa não é a realidade, nunca foi. Apesar de eu preferir não machucar as pessoas, aprendi desde cedo a tratar meu corpo como uma arma e, isso foi antes de saber dos meus poderes. Se quisesse, eu poderia derrubá-lo com um soco e ele teria sorte se algum dia voltasse a acordar, alguém como ele jamais conseguiria sequer me arranhar.

— Acerta ele, Dy! Acaba com a raça desse otário! — Z grita, empolgado. Eu apenas balanço a cabeça negativamente. O fato de ele gostar tanto de criar essas situações me preocupa.

— Pare de gri-gritar, Z! — Duncan pede, atras dele. — A culpa é to-toda sua!

Eu reviro os olhos. Mesmo o Duncan sabendo que não deveria seguir as ideias do Z, de alguma forma sempre acaba o ajudando. E aí quando tudo dá errado ele culpa o Z e chora antes que eu realmente possa gritar com ele.

— Chega? — eu pergunto, depois de alguns minutos naquela dança.

— Se não posso bater em você... — o homem tenta partir para cima dos garotos.

Eu não deixo. Isso sim me irrita — tinha dado um alvo para fúria dele, talvez até deixasse me acertar uma vez antes de mandá-lo ir embora, só para manter o orgulho intacto —, não ia permitir que encostasse nos garotos. Então com dois movimentos rápidos acerto as articulações de seus braços, ele grita de dor e cai no chão, espantado.

— Melhor ir para casa, amigo. Acabou.

— Vocês... — ele tenta mover os braços, inutilmente, não vai conseguir, provavelmente pelo resto do dia. — Isso não vai ficar assim! — apesar da ameaça, sai correndo assim que consegue se levantar.

Sei que ele nunca vai me esquecer e que se ele me encontrar de novo vai tentar me matar, mas ele não é o primeiro nem o último cara que quer isso, nenhum conseguiu.

— O Dy é o melhor! Ninguém ganha dele numa briga! — Z comemora com os braços para cima. Eu não consigo me conter e acerto um cascudo bem no meio da cabeça. — Ai! Para que isso?!

— Vocês são idiotas, retardados ou o que?! — pergunto na mesma hora, sinto as veias na minha testa pulsarem. — Quantas vezes vou ter que falar para não fazerem merdas assim? Por causa disso não vamos poder voltar no parque por um bom tempo e todo o dinheiro fácil dos turistas vai ser perdido! E porra! Quantas vezes preciso dizer para não pegarem as carteiras? Só o dinheiro, caralho! Não queremos chamar atenção para ninguém vir atras da gente depois! — não é a primeira vez que digo isso, mas espero que seja a última.

— Mas olha quanto dinheiro conseguimos! — Z tira dos bolsos da calça um monte de notas emboladas de diversos valores. — Consegui quase 500 pratas! E isso sem contar o que o Duncan conseguiu pegar no jogo! Temos dinheiro para semana toda. Eu posso até comprar umas revistas...

— Fo-foi ideia de-dele! — Duncan encolhe os ombros assim que olho na sua direção, é sempre assim que ele reage quando está assustado ou nervoso.

— É claro que foi ideia do Z! Todas as piores ideias são do Z! — eu resmungo, cansado.

Em situações como essas sempre me pergunto se fiz a coisa certa ao acolhê-los. Não que eu tivesse muitas opções quando os encontrei, mas talvez eles pudessem ter uma vida melhor longe de mim.

Z — é o apelido, Zhao é o nome dele —, é o mais novo do grupo, tem apenas dez anos. A mente dele as vezes me impressiona, pensa mais rápido do que eu posso acompanhar e ele aprende qualquer coisa que encontra nos livros sem muita dificuldade. Nem sempre ele usa seus talentos para o mal, quase sempre é ele quem resolve os problemas mecânicos que surgem no hospital — e isso após ler por poucas horas em algum computador da região. Eu sempre me pergunto que tipo de futuro ele poderia ter se estivesse matriculado em uma escola e desenvolvendo esse potencial.

Duncan é o oposto dele. Acho que a falta de confiança tem a ver com a cegueira de um olho e a cicatriz enorme ao redor. Ele se acha feio, isso é um fato. Toda vez que fica perto de um espelho a expressão dele muda e já o peguei chorando enquanto olhava o próprio reflexo. Isso me enfurece, a culpa desse ferimento é do pai bêbado dele, alguém que deveria proteger e amá-lo, não espancar quando desse vontade! Não sei se ele gaguejava antes disso, mas desde que o conheci é um problema do qual ele não consegue se livrar e ele sempre encara o chão ao menor sinal de contato visual. Apesar disso tudo e do pessimismo evidente, de alguma forma é só o Z dizer que tem um plano e ele logo sai correndo para ajudar. Vai entender.

— Harvey deixou mesmo vocês fazerem essa merda? — pergunto, assim que me acalmo o bastante para não querer esganá-los.

— Ele estava esquisito, mais que o normal. Saiu sem tomar café da manhã — Z conta, ainda esfregando o lugar onde o acertei.


— Eu até ofereci ce-cereal! — Duncan diz em seguida. — O fa-favorito dele, com os mar-marshmallows!

 Normalmente o Harvey jamais sairia sem avisar, principalmente quando esses dois estão tramando algo. Isso tem um bom motivo e me sinto um idiota por não me lembrar antes. Era um dia que eu não deveria esquecer: 23 de agosto. Um aniversário, um dos tristes. Nós nos conhecemos nessa data cinco anos atrás. Aquele dia mudou a vida do Harvey para sempre e a minha também, de certa forma. Por mais que eu seja grato por tê-lo por perto, acho que nenhum de nós gosta de como isso acabou acontecendo.

— Eu sei aonde ele deve estar — digo, após uma longa pausa. — Vou ir atras dele — não consigo evitar a tristeza. — Vocês conseguem voltar para casa sem fazer merda no caminho??

— Si-Sim! — Duncan assente com a cabeça.

— Ganhar dinheiro não é fazer merda — Z resmunga, dá para ver que ele ainda está orgulhoso do que fez e que meu sermão não teve qualquer efeito.

— Por falar nisso — eu estendo a mão. — Passa a grana para cá. Não vou deixar você gastar esse dinheiro com revistinhas!

Qual é! — ele dá alguns passos para trás. — Reclama de como eu consigo o dinheiro e agora quer tomar de mim?! — ele se espicha para poder me encarar, sinto vontade de rir.

— Qual são as regras, hein? Será que se esqueceu delas?    

— Não roubar documentos, nunca roubar idosos ou deficientes e jamais ferir alguém. — Duncan recita as três regras que eu estabeleci quando nós começamos a trabalhar em equipe.

— Você não só violou as regras, como me fez machucar alguém para proteger vocês dois! — sinto a raiva voltando, já estou ficando farto dessa discussão repetida. — Aquele cara não estava errado, e mesmo assim tive que bater nele! Isso porque se eu deixasse ele pegá-los iria fazer coisa muito pior! Isso se não entregasse vocês dois pra polícia! Aí sim eu não ia poder fazer nada! Então acho melhor você entregar logo o dinheiro e considerar isso como seu castigo, Z. Talvez assim aprenda a lição!

— Você nem machucou ele de verdade! — o rosto dele ganha uma coloração avermelhada. — Só está bravo porque fizemos as coisas do meu jeito e não do seu!

— Você não precisa fazer nada do meu jeito — digo sem pensar. — É só ir embora.

Os olhos dele se arregalam, na mesma hora me arrependo, mas o Z não quer ceder mesmo assim.

— To-toma — Duncan me entrega o dinheiro que estava em seus bolsos. — Entrega logo o di-dinheiro, Z! Depois a gente pe-pega mais! — consigo ver o medo que ele tem do rumo que a discussão tomou. 

— Pega logo essa merda! — Z praticamente joga as notas na minha mão e já ia caminhar para fora do beco.

— As carteiras também — eu o lembro. — Podem ficar com os relógios. Levem para o fuinha, ele vai dizer se eles têm algum valor. 

— Tá — Z resmunga antes de deixar as carteiras comigo.

— Vo-você vai demorar para voltar para ca-casa?

— Assim que encontrar o Harvey e a Vallery estarei de volta — respondo. — Dona Dalma precisa de ajuda nas entregas e nos prometeu algumas tortas.

Oba! — Duncan comemora, isso me animou, um pouco.

— Se não gostou do que a gente fez, espera só até ver o que a Vall vai aprontar! — Z diz, pouco antes de sair correndo e puxar o Duncan com ele.

— O que você quer dizer com isso?! — grito, mas única resposta que recebo é uma risada travessa. — Eu mereço...

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