Pular para o conteúdo principal

Herdeiros do Caos - O Lamento do Príncipe capítulo 11

 Recomeçar nem sempre é fácil.

 

 Quando o Golfinho Dourado me levou até a margem eu não tinha ideia de que ano era ou onde estava. Minha consciência vinha oscilando há dias e, o tempo que eu fiquei no mar sem comer não ajudava em nada. Minhas roupas não eram nada além de farrapos naquela altura e, meu relógio se tornou uma pintura abstrata feita de arranhões.

Levou algum tempo até que eu conseguisse me erguer — nem mesmo meus poderes me impediam de chegar à exaustão — e me deparar com uma praia completamente deserta. O céu estava repleto de nuvens cinzentas e uma chuva fraca caía, mas isso pareceu ser o suficiente para afastar os banhistas.

Não reconheci nada nos arredores, mas esse não era o maior problema. Eu precisava sair de lá, encontrar comida e me esconder. O medo de ser encontrado ainda estava me assombrando.

Pulei para fora do barco quando senti que havia alguns pequenos caranguejos beliscando os meus pés.

— Porra! — minhas mãos agiram rápido para afastar aqueles que insistiam em não me largar. — Onde... — gostaria que o barco pudesse falar. — Eu sei que disse para me levar para terra, mas podia ser algum lugar que eu conheço... — toquei a lateral do casco, mas na mesma hora o Golfinho Dourado começou a recuar para o mar. — Pelo visto você não está de bom humor... que seja.

Dei de ombros e comecei a caminhar, estava por conta própria, só para variar.

A areia se estendia por alguns quilômetros até chegar a uma enorme cidade costeira. Enquanto andava meu corpo começou a tremer de frio e, meu estomago a me dizer que eu deveria ter comido os caranguejos.

Em todo o meu tempo na terra foram poucas as vezes em que me senti perto da morte e, aquela foi uma das piores. Perdi a noção de quantas vezes me afoguei na travessia, quantas tempestades enfrentamos ou de quantos dias passei sem uma gota de água potável. Não era de admirar que minha mente estivesse desorientada ou que meus pés não quisessem me obedecer.

Minha única preocupação era encontrar abrigo, comida e um lugar quentinho para dormir. Afinal, até mesmo um amante do frio como eu não era muito fã da hipotermia.   

Se dependesse do meu estomago ou dos meus pés, eu teria parado ali mesmo e arranjado algum jeito de derrubar uma das poucas gaivotas que apareceram no meu caminho, mas mesmo no meu pior estado, sabia que ficar na praia era arriscado, seria o primeiro lugar onde eles olhariam se estivessem atrás de mim.

Depois do que pareceram horas cheguei a primeira rua, mas ainda demorou um pouco até que eu encontrasse uma praia.

— Old Charlotte... — eu sorri feito um bobo por conseguir ler a placa.

Inglês, o bom e velho inglês. Eu poderia me comunicar, descobrir onde havia ido parar e para onde ir a seguir. Isso era um verdadeiro alívio. Porém, o maior motivo para o meu sorriso era o cheiro de pão fresco que vinha de uma padaria bem na esquina. Era tudo que eu precisava.

Comecei a cambalear na direção do prédio rosa com o letreiro repleto de ilustrações de pães e bolos. Nem me importava com o fato de estar sem dinheiro, poderia muito bem roubar se fosse preciso. Tudo que importava era saciar a minha fome.

— Você deve estar faminto — escutei uma voz de mulher atrás de mim e meu coração gelou. — Pobrezinho... olhe esses trapos...

Eram eles, tinham de ser. Me encontraram bem na hora que eu pensei que as coisas estavam melhorando. No entanto, quando me virei na direção dela pronto para atacar, tudo que eu vi foi uma mulher gravida segurando um guarda-chuva vermelho.

Eu congelei, não sabia o que pensar.

— Foi mal... eu pensei... — me lembro de ter coçado a nuca envergonhado pelo que eu quase fiz.

— Não se preocupe, eu sei como é viver fugindo — voz dela era doce, suave e compreensiva. Mesmo assim eu arregalei os olhos e dei um salto para trás.

— É melhor ir embora agora! — eu gritei, desesperado. — Eu juro que não vou voltar para lá, nem se tiver que ferir uma grávida!

Me coloquei em posição de luta, meus olhos se iluminaram e eu ia usar qualquer poder que ainda tivesse contra ela se fosse preciso.

— Pega leve, amigo.

Mais uma vez fui surpreendido, um homem de sobretudo marrom surgiu atrás de mim e, com apenas um toque fez meu corpo — que já estava fraco — amolecer.

Desabei no chão na mesma hora.

— Já te falei para melhorar sua abordagem, querida. Assustou ele! — disse o homem, antes de me jogar em cima de seus ombros.

— Ei! Nem vem! Eu ia oferecer comida para ele! — ela se defendeu. — É minha culpa que ele se assustou?

— Podia ter deixado de fora a parte do “eu sei como é viver fugindo.”

— Por favor... não me leva de volta... — tive de me esforçar muito para conseguir dizer isso.

— Não se preocupe, vai ficar tudo bem.

A mulher se aproximou de mim, seus dedos foram até minha tesa e, de repente, tudo se apagou.

Minha mente vagou por minutos, horas, dias... eu não sei. Só lembro que fui levado até um tempo que eu preferia esquecer. Tiros, explosões, gritos agonizantes, sons de motor, terra úmida e sangue, muito sangue. As cenas passavam rápido, mas a cada lembrança era como se a dor retornasse e, ver o rosto dele se repetindo foi demais para meu coração. Um sorriso sem vida, escondendo toda a tristeza que de suas últimas palavras.

— Stanley! — acordei gritando.

Meu pulso estava acelerado, suor frio escorria por todo meu corpo e, minhas mãos tremiam incontrolavelmente.

— Quem é Stanley? — só reparei na presença dele quando fez a pergunta.

Ele não estava usando o sobretudo, mas a voz era a mesma do homem que me raptou. Ele estava sentado em uma cadeira ao lado da cama onde eu estava deitado. Sua barba era longa, como se já não se barbeasse há meses. Seu cabelo era castanho, seus olhos eram verdes com respingos de azul aqui e ali, em seus braços havia diversas cicatrizes e, desconfio de que sua camisa escondia muito mais.

No entanto, o que realmente chamou atenção foi a esfera que ele estava segurando. Ela era vermelha, pulsava e, eu podia sentir algum tipo de semelhança emanando dela.

— Ninguém — eu respondi, de cara fechada. Não acordar em uma cela não foi o suficiente para me fazer aceitar o sequestro. — O que é isso? — apontei para a esfera.

— Sua energia.

— Estava me sugando? — questionei, desconfiado.

Só então olhei melhor o ambiente ao redor. Nós estávamos em um pequeno quarto com nada além da cama de solteiro onde eu estava, a cadeira e um guarda-roupas de duas portas. As rotas de fuga eram uma porta pela qual eu teria de passar por ele, ou uma janela pequena demais para eu conseguir me esgueirar.

Minha única escolha era descobrir o que ele queria comigo e ganhar tempo.

— Estabilizando, isso sim — ele deu um sorriso, acho que estava tentando ser simpático, mas é meio difícil acreditar que alguém que te sequestra quer ser seu amigo. — Você estava tendo um sonho agitado. Se eu não absorvesse o excesso, já teria derrubado o prédio.

— Que... lugar é esse? — levei a mão a cabeça e senti que ela estava latejando, isso era mais estranho que o sequestro.

— Nós te trouxemos para nossa casa. É mais seguro para você e para gente também — ele apontou para mim, depois acrescentou: — Eu tive que te dar um banho, Laura não estava aguentando seu fedor.

Foi só então que percebi que minhas roupas haviam sido trocadas. No lugar dos farrapos que eu estava usando eu ganhei uma blusa listrada e uma caça de moletom, ambos largos demais para meu corpo franzino.

O que realmente me preocupou foi o fato de não ver o meu relógio por perto. Meu coração se acelerou e, a esfera começou a brilhar com mais intensidade.

— Meu relógio! Cadê meu relógio? — me levantei da cama num pulo.

— Calma — ele levou a mão até o bolso e tirou o meu relógio de lá, isso me acalmou, um pouco. — Eu guardei. Mas acho que é melhor comprar um novo, ele está todo destruído.

— Não importa! — tomei o relógio das mãos dele e fui logo o colocando no meu pulso, de onde ele não deveria sair. — Por que me trouxe para cá? Quem é você?

— Meu nome é Ellay Jackson — ele se apresentou, mais uma vez sorrindo. — E lamento o mau começo, mas nós não poderíamos ter essa conversa no meio da rua. Não dá pra saber quem vai ouvir.

— E aqui é mais seguro?

— Tem nos escondido há alguns anos, então, sim — Ellay deu de ombros. — Mas não tenho certeza se nós fugimos das mesmas pessoas. Quer me contar como chegou a Turnerstown?

— Não — eu não senti nenhuma mentira no que ele falou, mas não queria dizer que eu ia confiar nele. — Me diz você de quem está fugindo.

— Você é meio desconfiado, né? — Ellay balançou a cabeça em reprovação. — Vem comigo.

Eu o segui, mas não ignorei o fato de ele ainda estar com a esfera na mão.

Depois da porta me deparei com um corredor apertado com uma outra porta a nossa frente e uma no fundo. Mas Ellay as ignorou e seguiu na outra direção.

Chegamos a uma sala/cozinha onde a mulher do guarda-chuva estava preparando um sanduíche — minha boca encheu d’água só de ver. E, olhando ao redor não detectei nenhuma ameaça, pelo menos nada aparente.

O lugar parecia um apartamento relativamente comum. Exceto pelo mapa na parede lateral com diversos pontinhos vermelhos se movendo ao longo da cidade.

— O que é isso?

— Um mapa para ficarmos de olho em seres mágicos — Laura respondeu. — Foi assim que soubemos que você tinha chegado.

— Cada um deles é uma criatura? — me aproximei, cheio de curiosidade. Vi um ponto que ocupava quase três quarteirões do mapa. — E esse? É quase 10 vezes maior que os outros.

— Esse é você — Ellay respondeu, enquanto colocava a esfera em um suporte. — Nós até pensamos que era algum deus fazendo uma visita. Nunca tínhamos visto tanto poder assim.

— O que você é, afinal? — Laura perguntou, me encarando.

Aproveitei para fazer o mesmo e, percebi que além do fato de estar grávida, ela se destacava pela beleza. Bonita o bastante para eu querer dar em cima dela, mesmo imaginando que ela já era casada. Seus cabelos eram ruivos, presos em uma trança. Seus olhos eram verdes, mas muito mais vivos que os de Ellay, pareciam duas esmeraldas e, por traz deles parecia haver uma gentileza convidativa.  

— Eu também queria saber...

Desviei o olhar e me voltei ao mapa. Toquei o ponto que me representava com o indicador, imaginando se esse mapa teria alguma resposta.

— É como eu pensei. Isso explica por que tem um controle tão ruim do seu poder — Ellay apontou para a esfera. — Você nem deve sentir, mas a energia literalmente vaza de você enquanto anda. Ela é tão intensa que nem sei como você não explode de dentro para fora.

— Bem que eu queria. Esse poder nunca me trouxe nada de bom — dei de ombros, não sabia o que dizer sobre isso.

Me lembrei de que estava faminto ao perceber que estava olhando fixamente o sanduíche or tempo o bastante para começar a babar.

— Nossa! Eu já ia me esquecendo! — Laura colocou mais algumas fatias de queijo, depois me chamou para mais perto com a outra mão. — É para você mesmo. Você parecia tão faminto na porta da padaria... fiquei morrendo de dó de não ter te comprado comida lá mesmo.

— Eu... não posso... eu... — meu orgulho quase me fez negar, mas meu estomago venceu a batalha. — Muito obrigado.

— Deixa disso. Depois de te sequestrar, é o mínimo que podemos fazer — Ellay foi até a geladeira e pegou uma latinha de refrigerante, torci que fosse para mim. — Que tal responder algumas perguntas enquanto enche a pança?

— Tá — murmurei com a boca cheia.

Não sei se era minha fome ou se aquele era realmente o melhor sanduíche do mundo, mas nunca vou me esquecer do sabor.

— Não precisa ter pressa. Se ainda tiver fome eu faço outro — Laura sorriu gentilmente, depois apontou para as cadeiras ao redor da pequena mesa circular. — Sente-se, comer em pé faz mal.

— Tá — naquela hora eu só queria me concentrar em apreciar cada um dos sabores: queijo, presunto, molho apimentado, alface, azeitona e um leve toque de limão. — Isso aqui tá bom para porra!

— Tá vendo? Alguém gosta do meu sanduíche! — Laura deu um peteleco na cabeça de Ellay. — Você que é um fresco!

— Quem mistura pimenta com limão? Eca! — Ellay fez uma cara de nojo e eu balancei a cabeça negativamente, sem entender como alguém não gostaria de algo tão bom.

— Vocês... são casados?

— Infelizmente, sim — foi Laura quem respondeu, o que a fez receber um olhar interrogativo do marido.

— O que você quis dizer com infelizmente? — Ellay questionou.

— Quando você disse que nós iriamos viver milhares de aventuras, não foi isso que eu pensei! — Laura apontou para sua barriga, depois para o apartamento.

— Lá vem você de novo! Vai dizer que a culpa é minha? Que eu não estou fazendo tudo que posso para nos tirar dessa? — Ellay ficou sério, parecia uma briga antiga.

— Ninguém me avisou que na saúde e na doença incluiria uma feiticeira das trevas querendo te matar! Seria bom ter tido um aviso, só isso! — Laura cruzou os braços e empinou o nariz.

— Feiticeira das trevas? — eu me intrometi, mais para distraí-los da briga do que por curiosidade. — É por isso que estão fugindo?

— Cara, ta aí uma longa história — Ellay se recompôs, envergonhado. — E eu acho melhor não te contar tudo, você não precisa se envolver nisso a menos que seja realmente necessário.

— Que? Me trouxeram até aqui e nem vão explicar toda a situação?

— Acredite, é melhor assim — foi Laura quem respondeu, com um olhar entristecido. — Se você passar no teste, vamos te explicar tudo, se não, pode seguir com sua vida.

— Agora tem um teste? Vocês estão querendo me levar para alguma escola de aberrações? — parei de morder o sanduíche apenas para beber alguns goles do refrigerante.

— Antes fosse — Ellay deu uma risada nervosa. — Para resumir, nós vamos te colocar na frente de um espelho e ele vai dizer se você é digno ou não. Se você for... bom, a procura que minha família tem feito a tantas gerações vai ter chegado ao fim.

— E se eu não for? Viro pedra ou algo do tipo? — voltei a morder o sanduíche. — E tem mais: por que eu iria querer passar por isso? Já tenho problemas o bastante.

— Se você não for digno, nada acontece e você está livre — Ellay deu de ombros. — E posso deixar isso mais interessante: Posso usar a energia que absorvi de você em um ritual para descobrir o que você é. Que tal?

Levantei uma de minhas sobrancelhas, aquilo me deixou bastante tentado. Aquela proposta foi o mais perto que eu cheguei em séculos de ter alguma resposta concreta, então era difícil reusar. No entanto, passar nesse teste estaria me colocando em um problema do qual eu não fazia ideia da proporção.

— Mas o que são vocês afinal?

— Pessoas que querem fazer o que é certo — foi o que Ellay respondeu.

— E que esperam dar ao filho um futuro melhor — Laura tocou a barriga e isso me fez tomar minha decisão.

— Eu faço esse teste — a frase saiu murmurada e a contragosto. — Mas dando certo ou não, vocês vão me dizer o que eu sou. Ok?

— Temos um acordo. Palavra de mago — Ellay estendeu sua mão e eu não relutei em aceitá-la.

— E agora?

— Eu vou preparar tudo que precisamos para o ritual — Laura se levantou e tocou a parede da sala duas vezes, foi então que um armário começou a sair de dentro dela. — Não se engane pelas aparências, somos mestres em ocultações.

— O que mais vocês escondem por aqui? — olhei ao redor novamente, sem saber que outros móveis poderiam surgir do nada.

— Muitas coisas legais, mas que não teremos tempo de te mostrar — Ellay também se levantou. — Você e eu temos de dar uma volta.

— O espelho não está em uma das paredes também?

— Seria muito perigoso. Se formos pegos, pelo menos saberemos que ele estará seguro — Ellay respondeu com um semblante entristecido.

— Vê se volta a tempo do jantar! Não vou te esperar para comer! — Laura advertiu, enquanto procurava alguma coisa no armário.

— Vocês se dão tão bem... — comentei, enquanto seguia Ellay para fora do apartamento.

— A gente implica muito um com o outro, mas é simplesmente porque é mais fácil do que dizer o que sentimos de verdade — disse Ellay após fechar a porta. — Voltar rápido para o jantar quer dizer que ela espera que eu volte vivo.

— No que vocês estão metidos? — senti meu coração pesar ao ouvir aquilo.

— Você nem vai querer saber — Ellay deu uma risada nervosa. — Fique perto de mim o tempo todo.

Eu não entendi na hora o motivo, mas obedeci.

Ele então se aproximou de uma das portas do corredor, depois de tocá-la a sua aparência começou a mudar até se tornar um portão de metal com três dragões desenhados em vota de uma fechadura estranha.

— Para onde isso leva?

— Para o Labirinto dos 7 Nobres — Ellay puxou um colar de dentro de sua blusa. Ele era feito de correntes de prata entrelaçadas e tinha o pingente de um leão com olhos de esmeralda. — Ele se expande pelo subsolo do mundo todo. Pode ser a forma mais rápida e segura de viajar, se você tiver um desses — ele apontou para o colar.

— E como é que as pessoas não sabem de uma coisa dessas?

— Porque ele é vivo. O labirinto está sempre mudando, se espalhando e se misturando a outras construções. Muitas pessoas entram nele sem querer e nunca mais são vistas. — Ellay tocou a fechadura com o colar e os dragões começaram a dançar em torno dela até desaparecem cada um para um canto da porta. — Sem um dos colares para te guiar, é melhor ficar bem longe dele.

A porta se abriu revelando escadas que desciam até onde minha visão alcançava e, provavelmente muito mais. Uma corrente de ar chegou até o corredor e com ela um calafrio medonho.

— Tem algo aí embaixo. Eu posso sentir.

— Você não está errado — Ellay sorriu, depois começou a caminhar para dentro. — Ele foi construído para proteger itens mágicos muito perigosos. E como os nobres não achavam que se perder era o bastante, eles encheram o labirinto de monstros. Às vezes eu acho que eles exageraram, mas aí eu lembro o que estamos enfrentando, daí penso que isso é até pouco.

— Ainda não vai me falar sobre isso? — apressei o passo para não ficar para trás.

— Você já me parece ter seus próprios problemas, não é? Estava fugindo de alguém e parecia bem assustado.

— Já conheceu o Doutor? — perguntei, com a voz hesitante.

— Estava fugindo de um médico?

— Fique feliz por não saber quem ele é — dei de ombros. — Aquele cara me assusta mais do que todos os monstros que devem estar aqui embaixo juntos.

— E posso saber como se meteu nisso?

— Vai contar por que tem uma feiticeira do mal atras de vocês?

— Talvez depois — Ellay apontou para o corredor a esquerda.

— Então esse colar brilha quando estamos no caminho certo? — a luz nos olhos do leão era a única coisa iluminando o corredor naquela hora.

— Basicamente. Ele também fica vermelho se tiver algum monstro por perto. — Ellay então parou em meio a uma bifurcação e apontou o colar para os dois túneis, no da esquerda os olhos brilharam verdes e no da direita vermelhos. — Viu? Se fossemos por ali, estaríamos encrencados.

— Isso parece bem útil. Onde arrumo um desses?

— Não arruma. Existem só 7 e eles são passados somente para os membros do Conselho dos Magos — a voz de Ellay ficou rouca e entristecida ao dizer aquilo.

— Então você é importante — conclui. — Talvez importante demais para ficar se escondendo em um lugar desses.

— Você é esperto. Acho que gosto de você — Ellay começou a encarar uma parede até que um portão exatamente como o anterior surgiu.

— E você... parece muito otimista, para alguém que está se escondendo — comentei, enquanto assistia os dragões dançarem em volta da fechadura.

— É parte do meu charme.

Mais alguns degraus surgiram, mas dessa vez levavam para cima. Depois de subirmos um pouco eu pude ver o céu — que estava claro e sem nuvens —, arvores altas para todos os lados e, depois de terminar a subida pude ver um lago no início da colina.  

Na nossa frente havia uma caverna e, tinha algo errado nela, algo sombrio. Só de chegar perto meu corpo se retesou todo.

— Que lugar é esse?

— A Caverna Sem Nome. É aqui que guardamos o espelho — Ellay começou a caminhar para dentro, mas eu hesitei. — Você pode sentir, não é?

— Sim. Poder... um poder sombrio...

— Vamos logo. Também não gosto daqui.

Nós caminhamos para dentro e, as tochas presas nas paredes laterais simplesmente se acenderam sozinhas.

Com a iluminação pude ver que havia desenhos e inscrições — símbolos, animais, monstros, espadas, algumas coisas que eu não entendia — espalhados por toda a caverna.

Ellay foi até o fundo e tocou três deles: Uma espada dourada, um escudo negro e um cajado vermelho. Toda a caverna começou a tremer e, a parede começou a se abrir lentamente.

Após alguns minutos, surgiram escadas que levavam para algum tipo de templo no subsolo.

— Sério? Mais escadas? — àquela altura eu já não tinha animo para isso.

— São as últimas, prometo.

Eu o segui sem muita vontade, havia algo naquele lugar que fazia meu estomago embrulhar. As paredes do templo eram feitas de uma rocha esverdeada que eu nunca tinha visto antes, elas brilhavam como se tivessem luz própria. Havia pilastras a cada dez metros, elas eram ornamentadas por espirais de ouro que seguiam até o teto onde se misturavam a rocha.

Depois de descer chegamos a um corredor estreito. No fim dele havia um altar com nada além de um espelho circular com mais ou menos dois metros de altura.

— E agora? — eu perguntei, sem ver nada demais.

— Basta tocá-lo e o teste começa.

— E se eu passar? O que acontece?

— E eu vou saber? Se já tivesse funcionado, nós não estaríamos aqui — Ellay se apoiou em um dos pilares.

— Que ótimo, você nem sabe se isso funciona — eu revirei os olhos.

— Ele funciona. Eu já fiz o teste — Ellay contou, encarando o chão. — Mas parece que não sou digno dessa merda! — ele gritou para o espelho.

— E acha que eu sou?

— Pode ser — ele encolheu os ombros. — Alguém que tem tanto poder como você poderia facilmente destruir ou conquistar o mundo, mas você não parece esse tipo de pessoa.

— Você não me conhece, Ellay. Não sabe o que eu já fiz — eu comecei a caminhar até o espelho. — Se tem algo que eu não sou, é digno.

— Só tem um jeito de ter certeza.

— Só vou fazer isso porque quero saber de onde eu vim.

Eu me lembro da sensação de tocar o espelho, da onda de choque que percorreu o meu corpo e de como a superfície do vidro começou a se tornar gelatinosa até me engolir para dentro. Por alguns instantes só havia o vazio e aquele lugar parecia não ter fim para qualquer lado que eu olhasse.

— Você demorou a vir — escutei uma voz que parecia vir de todas as direções, a minha voz.

— Quem está aí? Se mostre.

— Você é especial, eu vejo isso — na minha frente surgiu uma réplica exata de mim. — Mas não é esse seu destino.

— Quer explicar? — dei alguns passos para trás, a proximidade me incomodou.

O clone não disse nada. O cenário ao nosso redor começou a mudar: prédios em chamas surgiram de todos os lados, o céu era uma mistura de negro, vermelho e dourado, havia pessoas correndo e gritando por todo lado. Mas, o que mais me chamou atenção foi a espada negra que surgiu na mão dele.

— Existem trevas em seu coração.

A réplica balançou a mão com a espada algumas vezes, como se estivesse testando seu peso. Quando se sentiu satisfeito correu para cima de mim. Tentei desviar, mas eu mal tive tempo de reagir — ele era muito mais rápido do que eu já fui um dia — antes de receber um corte no peito.

Ele se afastou, com um sorriso cruel estampado no rosto. Mas não durou muito antes que viesse na minha direção novamente. No entanto, dessa vez eu consegui bloqueá-lo com uma espada dourada que surgiu na minha mão direita.

— Mas também existe luz — o clone se afastou, mas manteve a posição de batalha.

— Você quer que eu te derrote? É isso?

Senti meu sangue ferver, mas de um jeito novo e, então meu corpo ganhou algum tipo de aura dourada.

— Você ainda não entende — ele veio para cima de mim de novo, mas já não era tão rápido quanto antes e eu pude bloquear a maioria dos golpes. — Não pode ser um sem o outro — o clone segurou minha espada com uma das mãos e, com a outra, cravou sua própria lâmina no meu peito. — Jamais encontrará a paz até aceitar isso.

Eu caí no chão, sem forças para dizer qualquer coisa. Meu corpo então pareceu estar sendo rejeitado pelo espelho, lentamente fui cuspido de volta para o templo.

Eu tateei meu peito em busca do ferimento, mas não havia nenhum sinal dele, como se a luta jamais tivesse acontecido.

— Pelo visto não deu certo.

— O que... o que foi isso?

— O teste? Em teoria, nós deveríamos encarar a nós mesmos nele. E somente alguém em paz consigo mesmo poderia passar — Ellay deu de ombros. — Como se alguém assim existisse.

— Lamento — foi tudo que consegui dizer.

— Eu pensei que por você ter tanto poder, poderia conseguir burlar a proteção, mas pelo visto não tem como.

Ellay começou a andar para fora, sem olhar para trás uma vez sequer.

— Está feliz com isso?

— Sim. Isso significa que ela também não pode pegá-lo. Então podemos considerar o dia de hoje como uma vitória.  

— Ela? A tal feiticeira?

— É, mas quanto menos você souber, melhor — ele parecia tenso só de eu ter perguntado. — Agora, vamos cumprir nossa parte no acordo.

— Queria poder ajudar. Vocês parecem boas pessoas.

— Não se preocupe, vamos continuar procurando — Ellay tentou soar confiante, mas sua voz estava carregada de tristeza.

O caminho de volta foi em puro silêncio.

Ele não comentou, mas eu percebi que os corredores que usamos para voltar eram diferentes, o que só confirmou que eles realmente ficavam mudando.  Parecemos levar mais tempo na volta do que na ida e, quando chegamos, Ellay hesitou antes de abrir a porta.

— Vocês já voltaram? — Laura estava arrumando a mesa quando entramos. — E pela sua cara... — ela também fechou o semblante. — Não deu certo, não foi?

— Foi mal — foi tudo que eu disse.

— Nem tudo são más notícias — Ellay tentou sorrir. — Pelo menos descobrimos que o espelho está seguro. Mesmo que ela o encontre, não vai conseguir burlar o encanto.

— Já é alguma coisa... — Laura parou alguns segundos, depois respirou fundo. — Melhor cumprirmos nossa parte agora!

Ela se forçou a sorrir e voltou a organizar a mesa, me senti mal por eles. Tudo que pude fazer foi me apoiar na parede enquanto esperava eles terminarem a organização.

No centro da mesa eles colocaram um globo terrestre ao lado da esfera com minha energia. Ao redor deles havia um círculo repleto de inscrições e um tipo de estrela de cinco pontas com a cabeça de um sapo em cada uma.

— Como isso funciona? — perguntei, quando eles acabaram.

— Faremos com que sua energia busque por fontes semelhantes por todo o globo.  Quando achar, os sapos vão nos dizer o que é — Laura explicou, antes de se sentar em uma das cadeiras.

— Por que sapos?

— Animais tem uma sensibilidade muito maior para sentir seres mágicos — foi Ellay quem respondeu, antes de se sentar em outra cadeira e apontar a última para mim. — E cabeças de sapo assustam menos do que de cachorrinhos — ele acrescentou.

— Não vou discutir.

— Nos revele sua origem! — Ellay e Laura colocaram suas mãos sobre a esfera de energia.

— Não vão recitar um feitiço ou algo assim? — questionei.

— Magos não fazem isso — Ellay respondeu, revirando os olhos — Agora cale a boca ou vai atrapalhar.

Os dois então apontaram suas mãos esquerdas para o globo. Eu me espichei na direção da mesa, cheio de expectativa quando um fio de energia começou a sair da esfera e dançou em volta do globo.

E era isso, as respostas que eu queria estavam prestes a ser reveladas. A cada segundo que a energia passava procurando meu coração parava mais um pouco.

Porém, a decepção foi o que veio.

Quando os olhos dos sapos se abriram, estavam em chamas. Na mesma hora, a energia tomou conta do globo e ele foi consumido em questão de segundos.

— Que porra é essa? — Ellay perguntou, quase pulando da cadeira.

— Isso... isso nunca aconteceu antes... — Laura estava pálida, seus olhos arregalados como se tivessem visto a face encarnada do mal. — Seja lá o que você for...

— Não vem deste mundo — Ellay completou.

— Talvez eu seja mesmo um demônio. Era isso que achavam, onde eu nasci.

— Vamos ver isso — Laura foi até o armário, em busca de algo.

— O que vai fazer? — a resposta para a pergunta veio em um punhado de terra jogado em cima de mim. Com a surpresa eu sequer tive tempo de fechar a boca. — Que... merda! — reclamei entre cuspidas. — Para que isso?

— Terra de solo sagrado. Se fosse um demônio, teria se queimado com isso — Laura explicou. — Mas tem uma coisa engraçada com sua energia... tem muita Magia Profana misturada nela. Você também sentiu?

— Sim — Ellay concordou com a cabeça. — Essa magia é a que os demônios usam. E ela sempre deixa uma marca na terra onde passa. Animais agindo estranho, plantas morrendo, incêndios que começam sem explicação e por aí vai — ele explicou ao ver que eu não fazia ideia do que eles estavam falando.

— Só que nós nunca vimos tanta num lugar só. E como você não controla... nem sei que desastres poderia causar — Laura encarou o chão ao dizer isso.

— Um furacão? Tempestades? Uma onda de fogo capaz de destruir uma cidade? — questionei, me lembrando de eventos do passado.

— Algo me diz que você já passou por maus bocados... lamento mesmo. — Ellay começou a juntar as cabeças de sapos em uma sacola.

— Podem tirar isso de mim? Com essa esfera? — perguntei, desejando com todo o coração que a resposta fosse sim.

— Com o tiquinho que eu tirei para te acalmar ela já está rachando — Ellay apontou para os trincados que estavam surgindo com cada vez mais frequência. — Não acho que exista algo que vá aguentar todo o seu poder.

— Bom... e se... — Laura começou a divagar, chamando a atenção para si. — Nós poderíamos selar essa energia. Ela já está dentro dele mesmo, não é? Só iriamos impedir ela de sair e causar desastres. Isso pode proteger ele e todos a sua volta.

— Ficou maluca? — Ellay levantou o tom de voz. — Ele pode explodir! É bem capaz de só estar vivo porque está sempre liberando uma parte dessa energia. Seria como lacrar uma panela de pressão!

— Nós não temos como saber! A energia vem dele, não deve poder feri-lo!

— E se estiver errada, ele só vai se tornar uma bomba nuclear ambulante pronta para detonar e levar meio mundo junto! — Ellay não se convenceu.

— Eu quero isso — me intrometi mais uma vez. — Não ligo se posso explodir. Nós fazemos isso, e se eu sentir que tem algo errado vou para o meio do mar, ou sei lá. Por favor, não quero mais machucar as pessoas com isso!

— Você... — Ellay balançou a cabeça incrédulo.

— Está vendo? Ele quer tentar! — Laura parecia estar mais feliz por ter vencido a discussão do que com notar a ideia em prática.

— E como vai fazer isso? Nós não temos poder para criar um lacre assim — Ellay bufou, contrariado.

— Não precisamos — Laura voltou ao armário. — Posso criar um mecanismo cíclico que vai sugar e redirecionar a energia ao mesmo tempo — suas mãos se moviam rapidamente e o som de objetos batendo uns nos outros ecoou por toda a sala. — Achei! Mythril negro!

— Acha que vai funcionar? Com o poder que ele tem?

— Vocês estão me deixando confuso. Falem a minha língua — eu pedi.

— Mythril negro suga magia. São muito raros. Geralmente são usados em algemas ou prisões para seres com magia — Ellay explicou. — Não sei como isso poderia selar seus poderes.

— Às vezes você é tão devagar, querido. — Laura revirou os olhos. — O mecanismo que eu mencionei é uma tatuagem. Farei com que o Mythril se funda com a pele dele. Desse jeito ele vai se alimentar de sua energia constantemente.

— Tatuagem? Não acho que vai funcionar, eu já tentei. Minha pele se cura muito rápido e elas sempre somem.

No passado, eu posso ter feito parte de um tipo de “clube” de cavalheiros que eram marcados com uma certa tatuagem, mas como a minha sempre sumia, acabei tendo de sair dele.

— Isso é perfeito. Sua pele e o Mythril vão se fundir, então se um se cura... — Laura sorriu, cheia de animação.

— A outra também — Ellay concluiu. — Pode dar certo, se fizermos ele absorver apenas o excesso, podemos evitar qualquer risco de colapso.

— Finalmente, você entendeu! — Laura deu um beijo no rosto do marido, antes de correr para a pia.

— O que ela vai fazer?

— Misturar o Mythril e a tinta — Ellay explicou enquanto pegava algumas folhas de papel no armário. — E então, já sabe que tatuagem você que te sugando pelo resto da vida?

— Eu sempre gostei de serpentes.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Herdeiros do Caos - O lamento do príncipe prologo

  O que é o destino?   O final inevitável de uma jornada independentemente de quais escolhas foram tomadas? Seria o chamado a grandeza que os mortais tanto buscam? Talvez os grandes momentos que mudam o curso da história? Ou quem sabe um ser cruel que brinca com as possibilidades para se divertir? Para Lúcifer a resposta era bem simples: injustiça. Seu pai havia criado ele e os irmãos com o propósito de serem os guardiões de toda a criação. E não importava o quanto fosse difícil ou que coisas terríveis ele tivesse de fazer em nome da paz, ele nunca desobedeceu. Mesmo assim, quando ele alertou que a humanidade seria a maior ameaça a prosperidade, isso foi visto como insubordinação. Claro que ele não poderia apenas ficar sentado esperando os mortais provarem que ele estava certo. Lúcifer já tinha se decidido de que eles eram uma causa perdida e foi por isso que desceu a Terra para mostrar o quão fácil poderiam ser corrompidos. Foi assim que ele conheceu Lilith. Apesar ...

Herdeiros do Caos - O lamento do príncipe capítulo 2

  Se você sente que algo vai dar errado, provavelmente está certo.     Guardo o dinheiro que tomei dos dois nos meus bolsos o melhor que consigo. Tenho que admitir que eles fizeram um bom trabalho, a quantidade é realmente boa, só queria que mantivessem os problemas no mínimo. E o pior é que se eu solto qualquer elogio para o Z ele toma isso como validação para o que ele fez e eu não posso incentivar esse tipo de comportamento. O que o pai dele diria se estivesse aqui? Provavelmente, algo melhor do que ameaçar jogar o pobre garoto na rua. Qual o meu problema? E se o Duncan não entrasse no meio? Eu ia mesmo fazer isso? Não sei se conseguiria e, se eu não fizesse, ele nunca mais respeitaria minha autoridade. Que raiva! Vivo dizendo que não sou pai deles, mas cá estou eu pensando como um! Quer saber? Chega ! Vou focar na Vallery no momento, um problema de cada vez! Minha próxima parada é no cemitério. Harvey vai estar lá, tenho certeza disso. Nesse mesmo dia cinco ...

Herdeiros do caos - O Lamento do príncipe capítulo 1

  Cara, eu odeio o verão.   Sei que tem pessoas que adoram o calor, atividades ao ar livre e dias mais longos, mas eu não sou uma delas. Talvez por eu ter crescido em um lugar de clima frio, ou porque eu me sinta irritado no calor ou pode ser o suor escorrendo que me incomoda, não importa, sempre sofro nessa estação. Estou nesse mundo há quase mil anos e se até hoje não aprendi a suportar climas quentes, não acho que isso vai acontecer algum dia. Pata piorar os verões da América são piores do que eu estava acostumado na Europa, até mesmo quando chove eu me sinto mais abafado do que refrescado. Até em Seattle, onde vivo atualmente há cerca de dez anos, ainda não me acostumei com a temperatura. Gostaria que esse maldito hospital tivesse energia elétrica, aí eu poderia arranjar um ar-condicionado. Sinto falta da Larvenia, meu reino natal. Na região onde cresci havia neve a maior parte do ano, mesmo no verão eu não chegava a suar muito e isso considerando que eu tinha de...