Recomeçar nem sempre é fácil.
Quando o Golfinho Dourado me levou até a
margem eu não tinha ideia de que ano era ou onde estava. Minha consciência
vinha oscilando há dias e, o tempo que eu fiquei no mar sem comer não ajudava
em nada. Minhas roupas não eram nada além de farrapos naquela altura e, meu
relógio se tornou uma pintura abstrata feita de arranhões.
Levou algum tempo até que eu conseguisse me
erguer — nem mesmo meus poderes me impediam de chegar à exaustão — e me deparar
com uma praia completamente deserta. O céu estava repleto de nuvens cinzentas e
uma chuva fraca caía, mas isso pareceu ser o suficiente para afastar os
banhistas.
Não reconheci nada nos arredores, mas esse
não era o maior problema. Eu precisava sair de lá, encontrar comida e me
esconder. O medo de ser encontrado ainda estava me assombrando.
Pulei para fora do barco quando senti que
havia alguns pequenos caranguejos beliscando os meus pés.
— Porra! — minhas mãos agiram rápido para
afastar aqueles que insistiam em não me largar. — Onde... — gostaria que o
barco pudesse falar. — Eu sei que disse para me levar para terra, mas podia ser
algum lugar que eu conheço... — toquei a lateral do casco, mas na mesma hora o
Golfinho Dourado começou a recuar para o mar. — Pelo visto você não está de bom
humor... que seja.
Dei de ombros e comecei a caminhar, estava
por conta própria, só para variar.
A areia se estendia por alguns quilômetros
até chegar a uma enorme cidade costeira. Enquanto andava meu corpo começou a
tremer de frio e, meu estomago a me dizer que eu deveria ter comido os
caranguejos.
Em todo o meu tempo na terra foram poucas as
vezes em que me senti perto da morte e, aquela foi uma das piores. Perdi a
noção de quantas vezes me afoguei na travessia, quantas tempestades enfrentamos
ou de quantos dias passei sem uma gota de água potável. Não era de admirar que
minha mente estivesse desorientada ou que meus pés não quisessem me obedecer.
Minha única preocupação era encontrar
abrigo, comida e um lugar quentinho para dormir. Afinal, até mesmo um amante do
frio como eu não era muito fã da hipotermia.
Se dependesse do meu estomago ou dos meus
pés, eu teria parado ali mesmo e arranjado algum jeito de derrubar uma das
poucas gaivotas que apareceram no meu caminho, mas mesmo no meu pior estado,
sabia que ficar na praia era arriscado, seria o primeiro lugar onde eles
olhariam se estivessem atrás de mim.
Depois do que pareceram horas cheguei a
primeira rua, mas ainda demorou um pouco até que eu encontrasse uma praia.
— Old Charlotte... — eu sorri feito um bobo
por conseguir ler a placa.
Inglês, o bom e velho inglês. Eu poderia me
comunicar, descobrir onde havia ido parar e para onde ir a seguir. Isso era um
verdadeiro alívio. Porém, o maior motivo para o meu sorriso era o cheiro de pão
fresco que vinha de uma padaria bem na esquina. Era tudo que eu precisava.
Comecei a cambalear na direção do prédio
rosa com o letreiro repleto de ilustrações de pães e bolos. Nem me importava
com o fato de estar sem dinheiro, poderia muito bem roubar se fosse preciso.
Tudo que importava era saciar a minha fome.
— Você deve estar faminto — escutei uma voz
de mulher atrás de mim e meu coração gelou. — Pobrezinho... olhe esses
trapos...
Eram eles, tinham de ser. Me encontraram bem
na hora que eu pensei que as coisas estavam melhorando. No entanto, quando me
virei na direção dela pronto para atacar, tudo que eu vi foi uma mulher gravida
segurando um guarda-chuva vermelho.
Eu congelei, não sabia o que pensar.
— Foi mal... eu pensei... — me lembro de ter
coçado a nuca envergonhado pelo que eu quase fiz.
— Não se preocupe, eu sei como é viver
fugindo — voz dela era doce, suave e compreensiva. Mesmo assim eu arregalei os
olhos e dei um salto para trás.
— É melhor ir embora agora! — eu gritei,
desesperado. — Eu juro que não vou voltar para lá, nem se tiver que ferir uma
grávida!
Me coloquei em posição de luta, meus olhos
se iluminaram e eu ia usar qualquer poder que ainda tivesse contra ela se fosse
preciso.
— Pega leve, amigo.
Mais uma vez fui surpreendido, um homem de
sobretudo marrom surgiu atrás de mim e, com apenas um toque fez meu corpo — que
já estava fraco — amolecer.
Desabei no chão na mesma hora.
— Já te falei para melhorar sua abordagem,
querida. Assustou ele! — disse o homem, antes de me jogar em cima de seus
ombros.
— Ei! Nem vem! Eu ia oferecer comida para
ele! — ela se defendeu. — É minha culpa que ele se assustou?
— Podia ter deixado de fora a parte do “eu
sei como é viver fugindo.”
— Por favor... não me leva de volta... — tive
de me esforçar muito para conseguir dizer isso.
— Não se preocupe, vai ficar tudo bem.
A mulher se aproximou de mim, seus dedos
foram até minha tesa e, de repente, tudo se apagou.
Minha mente vagou por minutos, horas, dias...
eu não sei. Só lembro que fui levado até um tempo que eu preferia esquecer. Tiros,
explosões, gritos agonizantes, sons de motor, terra úmida e sangue, muito
sangue. As cenas passavam rápido, mas a cada lembrança era como se a dor
retornasse e, ver o rosto dele se repetindo foi demais para meu coração. Um
sorriso sem vida, escondendo toda a tristeza que de suas últimas palavras.
— Stanley! — acordei gritando.
Meu pulso estava acelerado, suor frio
escorria por todo meu corpo e, minhas mãos tremiam incontrolavelmente.
— Quem é Stanley? — só reparei na presença
dele quando fez a pergunta.
Ele não estava usando o sobretudo, mas a voz
era a mesma do homem que me raptou. Ele estava sentado em uma cadeira ao lado
da cama onde eu estava deitado. Sua barba era longa, como se já não se
barbeasse há meses. Seu cabelo era castanho, seus olhos eram verdes com
respingos de azul aqui e ali, em seus braços havia diversas cicatrizes e,
desconfio de que sua camisa escondia muito mais.
No entanto, o que realmente chamou atenção
foi a esfera que ele estava segurando. Ela era vermelha, pulsava e, eu podia
sentir algum tipo de semelhança emanando dela.
— Ninguém — eu respondi, de cara fechada.
Não acordar em uma cela não foi o suficiente para me fazer aceitar o sequestro.
— O que é isso? — apontei para a esfera.
— Sua energia.
— Estava me sugando? — questionei,
desconfiado.
Só então olhei melhor o ambiente ao redor.
Nós estávamos em um pequeno quarto com nada além da cama de solteiro onde eu
estava, a cadeira e um guarda-roupas de duas portas. As rotas de fuga eram uma
porta pela qual eu teria de passar por ele, ou uma janela pequena demais para
eu conseguir me esgueirar.
Minha única escolha era descobrir o que ele
queria comigo e ganhar tempo.
— Estabilizando, isso sim — ele deu um
sorriso, acho que estava tentando ser simpático, mas é meio difícil acreditar
que alguém que te sequestra quer ser seu amigo. — Você estava tendo um sonho
agitado. Se eu não absorvesse o excesso, já teria derrubado o prédio.
— Que... lugar é esse? — levei a mão a
cabeça e senti que ela estava latejando, isso era mais estranho que o
sequestro.
— Nós te trouxemos para nossa casa. É mais
seguro para você e para gente também — ele apontou para mim, depois
acrescentou: — Eu tive que te dar um banho, Laura não estava aguentando seu
fedor.
Foi só então que percebi que minhas roupas
haviam sido trocadas. No lugar dos farrapos que eu estava usando eu ganhei uma
blusa listrada e uma caça de moletom, ambos largos demais para meu corpo
franzino.
O que realmente me preocupou foi o fato de
não ver o meu relógio por perto. Meu coração se acelerou e, a esfera começou a
brilhar com mais intensidade.
— Meu relógio! Cadê meu relógio? — me levantei
da cama num pulo.
— Calma — ele levou a mão até o bolso e
tirou o meu relógio de lá, isso me acalmou, um pouco. — Eu guardei. Mas acho
que é melhor comprar um novo, ele está todo destruído.
— Não importa! — tomei o relógio das mãos
dele e fui logo o colocando no meu pulso, de onde ele não deveria sair. — Por
que me trouxe para cá? Quem é você?
— Meu nome é Ellay Jackson — ele se
apresentou, mais uma vez sorrindo. — E lamento o mau começo, mas nós não
poderíamos ter essa conversa no meio da rua. Não dá pra saber quem vai ouvir.
— E aqui é mais seguro?
— Tem nos escondido há alguns anos, então,
sim — Ellay deu de ombros. — Mas não tenho certeza se nós fugimos das mesmas
pessoas. Quer me contar como chegou a Turnerstown?
— Não — eu não senti nenhuma mentira no que
ele falou, mas não queria dizer que eu ia confiar nele. — Me diz você de quem
está fugindo.
— Você é meio desconfiado, né? — Ellay balançou
a cabeça em reprovação. — Vem comigo.
Eu o segui, mas não ignorei o fato de ele
ainda estar com a esfera na mão.
Depois da porta me deparei com um corredor
apertado com uma outra porta a nossa frente e uma no fundo. Mas Ellay as
ignorou e seguiu na outra direção.
Chegamos a uma sala/cozinha onde a mulher do
guarda-chuva estava preparando um sanduíche — minha boca encheu d’água só de
ver. E, olhando ao redor não detectei nenhuma ameaça, pelo menos nada aparente.
O lugar parecia um apartamento relativamente
comum. Exceto pelo mapa na parede lateral com diversos pontinhos vermelhos se
movendo ao longo da cidade.
— O que é isso?
— Um mapa para ficarmos de olho em seres
mágicos — Laura respondeu. — Foi assim que soubemos que você tinha chegado.
— Cada um deles é uma criatura? — me
aproximei, cheio de curiosidade. Vi um ponto que ocupava quase três quarteirões
do mapa. — E esse? É quase 10 vezes maior que os outros.
— Esse é você — Ellay respondeu, enquanto
colocava a esfera em um suporte. — Nós até pensamos que era algum deus fazendo
uma visita. Nunca tínhamos visto tanto poder assim.
— O que você é, afinal? — Laura perguntou,
me encarando.
Aproveitei para fazer o mesmo e, percebi que
além do fato de estar grávida, ela se destacava pela beleza. Bonita o bastante
para eu querer dar em cima dela, mesmo imaginando que ela já era casada. Seus
cabelos eram ruivos, presos em uma trança. Seus olhos eram verdes, mas muito
mais vivos que os de Ellay, pareciam duas esmeraldas e, por traz deles parecia
haver uma gentileza convidativa.
— Eu também queria saber...
Desviei o olhar e me voltei ao mapa. Toquei
o ponto que me representava com o indicador, imaginando se esse mapa teria
alguma resposta.
— É como eu pensei. Isso explica por que tem
um controle tão ruim do seu poder — Ellay apontou para a esfera. — Você nem
deve sentir, mas a energia literalmente vaza de você enquanto anda. Ela é tão
intensa que nem sei como você não explode de dentro para fora.
— Bem que eu queria. Esse poder nunca me
trouxe nada de bom — dei de ombros, não sabia o que dizer sobre isso.
Me lembrei de que estava faminto ao perceber
que estava olhando fixamente o sanduíche or tempo o bastante para começar a
babar.
— Nossa! Eu já ia me esquecendo! — Laura
colocou mais algumas fatias de queijo, depois me chamou para mais perto com a
outra mão. — É para você mesmo. Você parecia tão faminto na porta da padaria...
fiquei morrendo de dó de não ter te comprado comida lá mesmo.
— Eu... não posso... eu... — meu orgulho
quase me fez negar, mas meu estomago venceu a batalha. — Muito obrigado.
— Deixa disso. Depois de te sequestrar, é o
mínimo que podemos fazer — Ellay foi até a geladeira e pegou uma latinha de
refrigerante, torci que fosse para mim. — Que tal responder algumas perguntas
enquanto enche a pança?
— Tá — murmurei com a boca cheia.
Não sei se era minha fome ou se aquele era
realmente o melhor sanduíche do mundo, mas nunca vou me esquecer do sabor.
— Não precisa ter pressa. Se ainda tiver
fome eu faço outro — Laura sorriu gentilmente, depois apontou para as cadeiras
ao redor da pequena mesa circular. — Sente-se, comer em pé faz mal.
— Tá — naquela hora eu só queria me
concentrar em apreciar cada um dos sabores: queijo, presunto, molho apimentado,
alface, azeitona e um leve toque de limão. — Isso aqui tá bom para porra!
— Tá vendo? Alguém gosta do meu sanduíche! —
Laura deu um peteleco na cabeça de Ellay. — Você que é um fresco!
— Quem mistura pimenta com limão? Eca! —
Ellay fez uma cara de nojo e eu balancei a cabeça negativamente, sem entender
como alguém não gostaria de algo tão bom.
— Vocês... são casados?
— Infelizmente, sim — foi Laura quem
respondeu, o que a fez receber um olhar interrogativo do marido.
— O que você quis dizer com infelizmente? —
Ellay questionou.
— Quando você disse que nós iriamos viver
milhares de aventuras, não foi isso que eu pensei! — Laura apontou para sua
barriga, depois para o apartamento.
— Lá vem você de novo! Vai dizer que a culpa
é minha? Que eu não estou fazendo tudo que posso para nos tirar dessa? — Ellay ficou
sério, parecia uma briga antiga.
— Ninguém me avisou que na saúde e na doença
incluiria uma feiticeira das trevas querendo te matar! Seria bom ter tido um
aviso, só isso! — Laura cruzou os braços e empinou o nariz.
— Feiticeira das trevas? — eu me intrometi,
mais para distraí-los da briga do que por curiosidade. — É por isso que estão
fugindo?
— Cara, ta aí uma longa história — Ellay se
recompôs, envergonhado. — E eu acho melhor não te contar tudo, você não precisa
se envolver nisso a menos que seja realmente necessário.
— Que? Me trouxeram até aqui e nem vão
explicar toda a situação?
— Acredite, é melhor assim — foi Laura quem
respondeu, com um olhar entristecido. — Se você passar no teste, vamos te
explicar tudo, se não, pode seguir com sua vida.
— Agora tem um teste? Vocês estão querendo
me levar para alguma escola de aberrações? — parei de morder o sanduíche apenas
para beber alguns goles do refrigerante.
— Antes fosse — Ellay deu uma risada
nervosa. — Para resumir, nós vamos te colocar na frente de um espelho e ele vai
dizer se você é digno ou não. Se você for... bom, a procura que minha família
tem feito a tantas gerações vai ter chegado ao fim.
— E se eu não for? Viro pedra ou algo do
tipo? — voltei a morder o sanduíche. — E tem mais: por que eu iria querer
passar por isso? Já tenho problemas o bastante.
— Se você não for digno, nada acontece e
você está livre — Ellay deu de ombros. — E posso deixar isso mais interessante:
Posso usar a energia que absorvi de você em um ritual para descobrir o que você
é. Que tal?
Levantei uma de minhas sobrancelhas, aquilo
me deixou bastante tentado. Aquela proposta foi o mais perto que eu cheguei em
séculos de ter alguma resposta concreta, então era difícil reusar. No entanto,
passar nesse teste estaria me colocando em um problema do qual eu não fazia
ideia da proporção.
— Mas o que são vocês afinal?
— Pessoas que querem fazer o que é certo — foi
o que Ellay respondeu.
— E que esperam dar ao filho um futuro
melhor — Laura tocou a barriga e isso me fez tomar minha decisão.
— Eu faço esse teste — a frase saiu
murmurada e a contragosto. — Mas dando certo ou não, vocês vão me dizer o que
eu sou. Ok?
— Temos um acordo. Palavra de mago — Ellay
estendeu sua mão e eu não relutei em aceitá-la.
— E agora?
— Eu vou preparar tudo que precisamos para o
ritual — Laura se levantou e tocou a parede da sala duas vezes, foi então que
um armário começou a sair de dentro dela. — Não se engane pelas aparências,
somos mestres em ocultações.
— O que mais vocês escondem por aqui? — olhei
ao redor novamente, sem saber que outros móveis poderiam surgir do nada.
— Muitas coisas legais, mas que não teremos
tempo de te mostrar — Ellay também se levantou. — Você e eu temos de dar uma
volta.
— O espelho não está em uma das paredes
também?
— Seria muito perigoso. Se formos pegos,
pelo menos saberemos que ele estará seguro — Ellay respondeu com um semblante
entristecido.
— Vê se volta a tempo do jantar! Não vou te
esperar para comer! — Laura advertiu, enquanto procurava alguma coisa no
armário.
— Vocês se dão tão bem... — comentei,
enquanto seguia Ellay para fora do apartamento.
— A gente implica muito um com o outro, mas
é simplesmente porque é mais fácil do que dizer o que sentimos de verdade — disse
Ellay após fechar a porta. — Voltar rápido para o jantar quer dizer que ela
espera que eu volte vivo.
— No que vocês estão metidos? — senti meu
coração pesar ao ouvir aquilo.
— Você nem vai querer saber — Ellay deu uma
risada nervosa. — Fique perto de mim o tempo todo.
Eu não entendi na hora o motivo, mas
obedeci.
Ele então se aproximou de uma das portas do
corredor, depois de tocá-la a sua aparência começou a mudar até se tornar um
portão de metal com três dragões desenhados em vota de uma fechadura estranha.
— Para onde isso leva?
— Para o Labirinto dos 7 Nobres — Ellay
puxou um colar de dentro de sua blusa. Ele era feito de correntes de prata
entrelaçadas e tinha o pingente de um leão com olhos de esmeralda. — Ele se
expande pelo subsolo do mundo todo. Pode ser a forma mais rápida e segura de
viajar, se você tiver um desses — ele apontou para o colar.
— E como é que as pessoas não sabem de uma
coisa dessas?
— Porque ele é vivo. O labirinto está sempre
mudando, se espalhando e se misturando a outras construções. Muitas pessoas
entram nele sem querer e nunca mais são vistas. — Ellay tocou a fechadura com o
colar e os dragões começaram a dançar em torno dela até desaparecem cada um
para um canto da porta. — Sem um dos colares para te guiar, é melhor ficar bem
longe dele.
A porta se abriu revelando escadas que
desciam até onde minha visão alcançava e, provavelmente muito mais. Uma
corrente de ar chegou até o corredor e com ela um calafrio medonho.
— Tem algo aí embaixo. Eu posso sentir.
— Você não está errado — Ellay sorriu,
depois começou a caminhar para dentro. — Ele foi construído para proteger itens
mágicos muito perigosos. E como os nobres não achavam que se perder era o
bastante, eles encheram o labirinto de monstros. Às vezes eu acho que eles
exageraram, mas aí eu lembro o que estamos enfrentando, daí penso que isso é
até pouco.
— Ainda não vai me falar sobre isso? —
apressei o passo para não ficar para trás.
— Você já me parece ter seus próprios
problemas, não é? Estava fugindo de alguém e parecia bem assustado.
— Já conheceu o Doutor? — perguntei, com a
voz hesitante.
— Estava fugindo de um médico?
— Fique feliz por não saber quem ele é — dei
de ombros. — Aquele cara me assusta mais do que todos os monstros que devem
estar aqui embaixo juntos.
— E posso saber como se meteu nisso?
— Vai contar por que tem uma feiticeira do
mal atras de vocês?
— Talvez depois — Ellay apontou para o
corredor a esquerda.
— Então esse colar brilha quando estamos no
caminho certo? — a luz nos olhos do leão era a única coisa iluminando o
corredor naquela hora.
— Basicamente. Ele também fica vermelho se
tiver algum monstro por perto. — Ellay então parou em meio a uma bifurcação e
apontou o colar para os dois túneis, no da esquerda os olhos brilharam verdes e
no da direita vermelhos. — Viu? Se fossemos por ali, estaríamos encrencados.
— Isso parece bem útil. Onde arrumo um desses?
— Não arruma. Existem só 7 e eles são
passados somente para os membros do Conselho dos Magos — a voz de Ellay ficou
rouca e entristecida ao dizer aquilo.
— Então você é importante — conclui. —
Talvez importante demais para ficar se escondendo em um lugar desses.
— Você é esperto. Acho que gosto de você —
Ellay começou a encarar uma parede até que um portão exatamente como o anterior
surgiu.
— E você... parece muito otimista, para
alguém que está se escondendo — comentei, enquanto assistia os dragões dançarem
em volta da fechadura.
— É parte do meu charme.
Mais alguns degraus surgiram, mas dessa vez
levavam para cima. Depois de subirmos um pouco eu pude ver o céu — que estava
claro e sem nuvens —, arvores altas para todos os lados e, depois de terminar a
subida pude ver um lago no início da colina.
Na nossa frente havia uma caverna e, tinha
algo errado nela, algo sombrio. Só de chegar perto meu corpo se retesou todo.
— Que lugar é esse?
— A Caverna Sem Nome. É aqui que guardamos o
espelho — Ellay começou a caminhar para dentro, mas eu hesitei. — Você pode
sentir, não é?
— Sim. Poder... um poder sombrio...
— Vamos logo. Também não gosto daqui.
Nós caminhamos para dentro e, as tochas
presas nas paredes laterais simplesmente se acenderam sozinhas.
Com a iluminação pude ver que havia desenhos
e inscrições — símbolos, animais, monstros, espadas, algumas coisas que eu não
entendia — espalhados por toda a caverna.
Ellay foi até o fundo e tocou três deles:
Uma espada dourada, um escudo negro e um cajado vermelho. Toda a caverna
começou a tremer e, a parede começou a se abrir lentamente.
Após alguns minutos, surgiram escadas que
levavam para algum tipo de templo no subsolo.
— Sério? Mais escadas? — àquela altura eu já
não tinha animo para isso.
— São as últimas, prometo.
Eu o segui sem muita vontade, havia algo
naquele lugar que fazia meu estomago embrulhar. As paredes do templo eram
feitas de uma rocha esverdeada que eu nunca tinha visto antes, elas brilhavam
como se tivessem luz própria. Havia pilastras a cada dez metros, elas eram
ornamentadas por espirais de ouro que seguiam até o teto onde se misturavam a
rocha.
Depois de descer chegamos a um corredor
estreito. No fim dele havia um altar com nada além de um espelho circular com
mais ou menos dois metros de altura.
— E agora? — eu perguntei, sem ver nada
demais.
— Basta tocá-lo e o teste começa.
— E se eu passar? O que acontece?
— E eu vou saber? Se já tivesse funcionado,
nós não estaríamos aqui — Ellay se apoiou em um dos pilares.
— Que ótimo, você nem sabe se isso funciona
— eu revirei os olhos.
— Ele funciona. Eu já fiz o teste — Ellay
contou, encarando o chão. — Mas parece que não sou digno dessa merda! — ele
gritou para o espelho.
— E acha que eu sou?
— Pode ser — ele encolheu os ombros. —
Alguém que tem tanto poder como você poderia facilmente destruir ou conquistar
o mundo, mas você não parece esse tipo de pessoa.
— Você não me conhece, Ellay. Não sabe o que
eu já fiz — eu comecei a caminhar até o espelho. — Se tem algo que eu não sou,
é digno.
— Só tem um jeito de ter certeza.
— Só vou fazer isso porque quero saber de
onde eu vim.
Eu me lembro da sensação de tocar o espelho,
da onda de choque que percorreu o meu corpo e de como a superfície do vidro
começou a se tornar gelatinosa até me engolir para dentro. Por alguns instantes
só havia o vazio e aquele lugar parecia não ter fim para qualquer lado que eu
olhasse.
— Você demorou a vir — escutei uma voz que
parecia vir de todas as direções, a minha voz.
— Quem está aí? Se mostre.
— Você é especial, eu vejo isso — na minha
frente surgiu uma réplica exata de mim. — Mas não é esse seu destino.
— Quer explicar? — dei alguns passos para
trás, a proximidade me incomodou.
O clone não disse nada. O cenário ao nosso
redor começou a mudar: prédios em chamas surgiram de todos os lados, o céu era
uma mistura de negro, vermelho e dourado, havia pessoas correndo e gritando por
todo lado. Mas, o que mais me chamou atenção foi a espada negra que surgiu na
mão dele.
— Existem trevas em seu coração.
A réplica balançou a mão com a espada
algumas vezes, como se estivesse testando seu peso. Quando se sentiu satisfeito
correu para cima de mim. Tentei desviar, mas eu mal tive tempo de reagir — ele
era muito mais rápido do que eu já fui um dia — antes de receber um corte no
peito.
Ele se afastou, com um sorriso cruel
estampado no rosto. Mas não durou muito antes que viesse na minha direção
novamente. No entanto, dessa vez eu consegui bloqueá-lo com uma espada dourada
que surgiu na minha mão direita.
— Mas também existe luz — o clone se
afastou, mas manteve a posição de batalha.
— Você quer que eu te derrote? É isso?
Senti meu sangue ferver, mas de um jeito
novo e, então meu corpo ganhou algum tipo de aura dourada.
— Você ainda não entende — ele veio para
cima de mim de novo, mas já não era tão rápido quanto antes e eu pude bloquear
a maioria dos golpes. — Não pode ser um sem o outro — o clone segurou minha
espada com uma das mãos e, com a outra, cravou sua própria lâmina no meu peito.
— Jamais encontrará a paz até aceitar isso.
Eu caí no chão, sem forças para dizer
qualquer coisa. Meu corpo então pareceu estar sendo rejeitado pelo espelho,
lentamente fui cuspido de volta para o templo.
Eu tateei meu peito em busca do ferimento,
mas não havia nenhum sinal dele, como se a luta jamais tivesse acontecido.
— Pelo visto não deu certo.
— O que... o que foi isso?
— O teste? Em teoria, nós deveríamos encarar
a nós mesmos nele. E somente alguém em paz consigo mesmo poderia passar — Ellay
deu de ombros. — Como se alguém assim existisse.
— Lamento — foi tudo que consegui dizer.
— Eu pensei que por você ter tanto poder,
poderia conseguir burlar a proteção, mas pelo visto não tem como.
Ellay começou a andar para fora, sem olhar
para trás uma vez sequer.
— Está feliz com isso?
— Sim. Isso significa que ela também
não pode pegá-lo. Então podemos considerar o dia de hoje como uma vitória.
— Ela? A tal feiticeira?
— É, mas quanto menos você souber, melhor — ele
parecia tenso só de eu ter perguntado. — Agora, vamos cumprir nossa parte no
acordo.
— Queria poder ajudar. Vocês parecem boas
pessoas.
— Não se preocupe, vamos continuar
procurando — Ellay tentou soar confiante, mas sua voz estava carregada de
tristeza.
O caminho de volta foi em puro silêncio.
Ele não comentou, mas eu percebi que os
corredores que usamos para voltar eram diferentes, o que só confirmou que eles
realmente ficavam mudando. Parecemos
levar mais tempo na volta do que na ida e, quando chegamos, Ellay hesitou antes
de abrir a porta.
— Vocês já voltaram? — Laura estava
arrumando a mesa quando entramos. — E pela sua cara... — ela também fechou o
semblante. — Não deu certo, não foi?
— Foi mal — foi tudo que eu disse.
— Nem tudo são más notícias — Ellay tentou
sorrir. — Pelo menos descobrimos que o espelho está seguro. Mesmo que ela o
encontre, não vai conseguir burlar o encanto.
— Já é alguma coisa... — Laura parou alguns
segundos, depois respirou fundo. — Melhor cumprirmos nossa parte agora!
Ela se forçou a sorrir e voltou a organizar
a mesa, me senti mal por eles. Tudo que pude fazer foi me apoiar na parede
enquanto esperava eles terminarem a organização.
No centro da mesa eles colocaram um globo
terrestre ao lado da esfera com minha energia. Ao redor deles havia um círculo
repleto de inscrições e um tipo de estrela de cinco pontas com a cabeça de um
sapo em cada uma.
— Como isso funciona? — perguntei, quando eles
acabaram.
— Faremos com que sua energia busque por
fontes semelhantes por todo o globo. Quando
achar, os sapos vão nos dizer o que é — Laura explicou, antes de se sentar em
uma das cadeiras.
— Por que sapos?
— Animais tem uma sensibilidade muito maior para
sentir seres mágicos — foi Ellay quem respondeu, antes de se sentar em outra
cadeira e apontar a última para mim. — E cabeças de sapo assustam menos do que
de cachorrinhos — ele acrescentou.
— Não vou discutir.
— Nos revele sua origem! — Ellay e Laura colocaram
suas mãos sobre a esfera de energia.
— Não vão recitar um feitiço ou algo assim?
— questionei.
— Magos não fazem isso — Ellay respondeu,
revirando os olhos — Agora cale a boca ou vai atrapalhar.
Os dois então apontaram suas mãos esquerdas
para o globo. Eu me espichei na direção da mesa, cheio de expectativa quando um
fio de energia começou a sair da esfera e dançou em volta do globo.
E era isso, as respostas que eu queria
estavam prestes a ser reveladas. A cada segundo que a energia passava
procurando meu coração parava mais um pouco.
Porém, a decepção foi o que veio.
Quando os olhos dos sapos se abriram,
estavam em chamas. Na mesma hora, a energia tomou conta do globo e ele foi
consumido em questão de segundos.
— Que porra é essa? — Ellay perguntou, quase
pulando da cadeira.
— Isso... isso nunca aconteceu antes... —
Laura estava pálida, seus olhos arregalados como se tivessem visto a face
encarnada do mal. — Seja lá o que você for...
— Não vem deste mundo — Ellay completou.
— Talvez eu seja mesmo um demônio. Era isso
que achavam, onde eu nasci.
— Vamos ver isso — Laura foi até o armário, em
busca de algo.
— O que vai fazer? — a resposta para a
pergunta veio em um punhado de terra jogado em cima de mim. Com a surpresa eu
sequer tive tempo de fechar a boca. — Que... merda! — reclamei entre cuspidas.
— Para que isso?
— Terra de solo sagrado. Se fosse um demônio,
teria se queimado com isso — Laura explicou. — Mas tem uma coisa engraçada com
sua energia... tem muita Magia Profana misturada nela. Você também sentiu?
— Sim — Ellay concordou com a cabeça. — Essa
magia é a que os demônios usam. E ela sempre deixa uma marca na terra onde
passa. Animais agindo estranho, plantas morrendo, incêndios que começam sem
explicação e por aí vai — ele explicou ao ver que eu não fazia ideia do que
eles estavam falando.
— Só que nós nunca vimos tanta num lugar só.
E como você não controla... nem sei que desastres poderia causar — Laura
encarou o chão ao dizer isso.
— Um furacão? Tempestades? Uma onda de fogo
capaz de destruir uma cidade? — questionei, me lembrando de eventos do passado.
— Algo me diz que você já passou por maus
bocados... lamento mesmo. — Ellay começou a juntar as cabeças de sapos em uma
sacola.
— Podem tirar isso de mim? Com essa esfera?
— perguntei, desejando com todo o coração que a resposta fosse sim.
— Com o tiquinho que eu tirei para te
acalmar ela já está rachando — Ellay apontou para os trincados que estavam
surgindo com cada vez mais frequência. — Não acho que exista algo que vá
aguentar todo o seu poder.
— Bom... e se... — Laura começou a divagar,
chamando a atenção para si. — Nós poderíamos selar essa energia. Ela já está
dentro dele mesmo, não é? Só iriamos impedir ela de sair e causar desastres.
Isso pode proteger ele e todos a sua volta.
— Ficou maluca? — Ellay levantou o tom de
voz. — Ele pode explodir! É bem capaz de só estar vivo porque está sempre
liberando uma parte dessa energia. Seria como lacrar uma panela de pressão!
— Nós não temos como saber! A energia vem
dele, não deve poder feri-lo!
— E se estiver errada, ele só vai se tornar
uma bomba nuclear ambulante pronta para detonar e levar meio mundo junto! —
Ellay não se convenceu.
— Eu quero isso — me intrometi mais uma vez.
— Não ligo se posso explodir. Nós fazemos isso, e se eu sentir que tem algo
errado vou para o meio do mar, ou sei lá. Por favor, não quero mais machucar as
pessoas com isso!
— Você... — Ellay balançou a cabeça
incrédulo.
— Está vendo? Ele quer tentar! — Laura
parecia estar mais feliz por ter vencido a discussão do que com notar a ideia
em prática.
— E como vai fazer isso? Nós não temos poder
para criar um lacre assim — Ellay bufou, contrariado.
— Não precisamos — Laura voltou ao armário.
— Posso criar um mecanismo cíclico que vai sugar e redirecionar a energia ao
mesmo tempo — suas mãos se moviam rapidamente e o som de objetos batendo uns
nos outros ecoou por toda a sala. — Achei! Mythril negro!
— Acha que vai funcionar? Com o poder que
ele tem?
— Vocês estão me deixando confuso. Falem a
minha língua — eu pedi.
— Mythril negro suga magia. São muito raros.
Geralmente são usados em algemas ou prisões para seres com magia — Ellay
explicou. — Não sei como isso poderia selar seus poderes.
— Às vezes você é tão devagar, querido. — Laura
revirou os olhos. — O mecanismo que eu mencionei é uma tatuagem. Farei com que o
Mythril se funda com a pele dele. Desse jeito ele vai se alimentar de sua
energia constantemente.
— Tatuagem? Não acho que vai funcionar, eu
já tentei. Minha pele se cura muito rápido e elas sempre somem.
No passado, eu posso ter feito parte de um
tipo de “clube” de cavalheiros que eram marcados com uma certa tatuagem, mas
como a minha sempre sumia, acabei tendo de sair dele.
— Isso é perfeito. Sua pele e o Mythril vão
se fundir, então se um se cura... — Laura sorriu, cheia de animação.
— A outra também — Ellay concluiu. — Pode
dar certo, se fizermos ele absorver apenas o excesso, podemos evitar qualquer
risco de colapso.
— Finalmente, você entendeu! — Laura deu um
beijo no rosto do marido, antes de correr para a pia.
— O que ela vai fazer?
— Misturar o Mythril e a tinta — Ellay
explicou enquanto pegava algumas folhas de papel no armário. — E então, já sabe
que tatuagem você que te sugando pelo resto da vida?
— Eu sempre gostei de serpentes.
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