O paraíso não é bem o que eu imaginava.
Por um instante tudo ficou preto, perdi
completamente a noção de espaço, também não conseguia ouvir nada. Comecei a
entrar em pânico, achando que Zuhiel tinha me mandado para algum tipo de
armadilha, mas então senti meu corpo sendo empurrado e puxado em milhões de
direções diferentes ao mesmo tempo. De repente, tudo parou e não havia nada
além do vazio. Quando voltei a raciocinar estava no meio de um corredor branco
sem fim repleto de portas douradas.
— Isso é o céu? — pergunto em voz alta.
— Parece um escritório — Vallery é a
primeira a surgir do meu lado. — Um escritório futurista, como nos quadrinhos
que o Z lê.
— Será que as almas estão em uma dessas
portas? — Z surge logo depois.
— Vamos ver — tiro o cristal do bolso e o
aponto na direção da porta mais próxima, mas nada acontece. — Pelo visto, não.
—
Acho que vo-vou... — Duncan surge atrás de nós, antes de conseguir
terminar a frase vomita no chão, sujando nossos sapatos.
— Parabéns Dunky Kong, você acabou de chamar
o ugo no céu! Que loucura! — Z começa a rir, sem se importar com a sujeira.
Harvey é o último a se juntar a nós. Quando
surge pelo portal perde o equilíbrio e cai em cima da Vallery, que acaba
derrubando o Z de bunda na poça de vômito. Faço uma careta só de pensar em
ficar com aquelas calças até darmos o fora daqui.
— Ah qual é! Vou ter que jogar essa calça
fora! — Z se levanta o mais rápido que consegue, depois olha para o próprio
traseiro com nojo.
— Be-bem-feito! — Duncan consegue rir, mas
ainda parece enjoado.
— Sem tempo para isso — começo a andar,
sacudindo os pés. — Temos de ser rápidos. Quanto antes terminarmos isso, melhor
— aponto o cristal para cada uma das portas por onde passo, mas nada acontece.
— Sabe quem vamos levar embora? — Vallery
corre para me alcançar. — Dona Dalma, talvez?
— Ela já morreu por minha causa, não vou
pedir para ela queimar no inferno também — me entristeço só de pensar nessa
ideia. — Vamos procurar pelo homem que me criou. O nome dele é Gerard. Mesmo
não gostando disso, sei que ele faria isso por mim.
— Então ele é tipo seu pai? — Z pergunta,
andando desajeitadamente atrás de mim.
— É, o mais perto que eu tive de um.
Paro onde o corredor se divide em três.
Aponto o cristal para cada um deles e nada. A decisão vai ter de ficar nas mãos
da sorte.
— E agora? Nos dividimos? — Vallery pergunta.
— Má ideia. Não sabemos o quanto vamos ter
de andar e podemos nos perder na hora de voltar pelo... cadê o portal? — me viro
para trás e a única coisa que vejo é a poça de vômito.
— Será que isso foi uma armadilha? — Z
pergunta, com os olhos mais cerrados que o de costume.
— Não dá para saber, não confio naquele cara
— fecho os olhos, respirei fundo e depois tomo uma decisão. — Vamos nos
separar. Vallery e Z pela esquerda, Harvey e Duncan pela direita e eu vou pelo
meio. Se encontrarem alguma coisa, gritem. Se virem alguém, corram de volta
para cá o mais rápido possível. Entenderam?
Pela primeira vez em muito tempo consegui
que todos concordassem sem reclamar. Nos dividimos entre os corredores e
começamos a correr. O cristal continua inerte e eu já não sei mais no que
pensar. Zuhiel está tentando me enganar? Mas como? Se ele mentisse, eu saberia.
Meu poder nunca falhou. Mesmo assim, toda vez que ele abre a boca eu sentia um
calafrio, como se meu corpo dissesse para não confiar nele. Nunca me senti
assim antes. E é difícil pensar em como me livrar dele enquanto tiver de me
preocupar em não quebrar o maldito pacto. Não, não é hora de pensar nisso.
— Por aqui! — de repente, escuto uma voz
infantil vindo de uma das portas.
— Vou mesmo cair nessa? — pergunto para mim
mesmo, desconfiado. Aponto o cristal na direção da porta e ele finalmente começa
a ressoar, fraco, mas é um começo. — Parece que sim.
Abro a porta, atrás dela tem uma escada
giratória que desce muito mais fundo do que meus olhos podem ver. Dou o
primeiro passo e, na mesma hora a porta atrás de mim desaparece, me deixando sem
escolha além de prosseguir.
Continuo descendo pelo que parecem ser
horas. Tentei contar os degraus, mas desisti depois de passar da casa dos
milhares. Apesar disso, não sinto qualquer sinal de cansaço ou fome desde que
cheguei aqui e, não comi nada desde o minúsculo pedaço de torta mais cedo,
Minha real preocupação é o tempo do feitiço.
Pelo que o Zuhiel disse, só duraria uma hora. Se ainda não fomos detectados, significa
que pelo menos para os padrões do mundo mortal, não se passou uma hora.
— Só mais um pouco — a voz finalmente quebra
o silencio.
O cristal começa a emitir um som agudo e a
brilhar, acho que estou mesmo chegando perto.
— Lá vamos nós — tiro minha faca do cós da
calça, mesmo que ela não funcione contra um anjo, é melhor que entrar
desarmado.
Os degraus terminam. Uma enorme porta
dourada está na minha frente, as laterais estão repletas de ornamentos e
inscrições. Não fico surpreso em conseguir lê-las: Sala de Registros. Empurro a
porta e me deparo com centenas, milhares, talvez milhões de armários de
arquivos espalhados em um salão que não parece ter fim. E, apesar de não haver
nenhuma lâmpada, o lugar não está escuro. Olho em volta e não vejo ninguém. Não
é bem o tipo de segurança que eu esperava, mas acho que não tem muitos idiotas
invadindo o paraíso.
Enquanto caminho estou checando cada um dos
armários e, aparentemente seguem uma ordem alfabética, só que já passei por
mais de duzentos armários e ainda não saí da letra D.
— Dy? Você tá aí? — escuto a voz do Z vindo
de algum lugar nas redondezas.
Isso é no mínimo estranho, só vi a porta
pela qual entrei e, se ela tivesse sido aberta de novo, eu teria ouvido.
— Z? É você?
— Não, imagina, devo ser uma voz na sua
cabeça! — a resposta sarcástica me faz ter certeza de que é ele. — Onde você
está?
— Letra D. E você?
— Corredor T! Não conhece ninguém com essa
letra?
— Não! Continua procurando — eu peço,
me sentindo meio bobo por ficar gritando sem saber para onde. — E aliás, como
veio parar aqui?
— Eu tam-também queria saber! — dessa vez é
o Duncan quem responde.
— Vocês também ouviram uma voz te mandando
vir pra cá? — Vallery pergunta, de algum outro lugar.
— Sim, mas de onde eu vim só tinha uma
porta! Como vocês entraram?
— Eu... não sei! Numa hora estava correndo
com a Val e na outra nós tínhamos nos separado! Depois a voz falou comigo até
eu chegar aqui! — Z conta.
— Co-como va-vamos achar o Harvey?
— Harvey, se você tiver por aí, bate em
alguma gaveta duas vezes! — grito, pouco depois escuto o barulho de metal
ecoando uma, depois duas vezes. — Beleza, agora que estamos todos aqui, tratem
de procurar pela letra G!
Tirando o fato de ser o paraíso, é quase
como um trabalho comum. Nós temos que correr por aí, achar um objeto valioso,
pegá-lo e não ser pegos. E, só para variar, meus amigos estão me ouvindo. Isso
sim é algo para se comemorar, embora eu preferisse não os ter trazido junto.
Continuei correndo pelo corredor e, quando
finalmente chego na letra E sinto meus pés doerem, o que significa que este
salão é diferente do resto, pelo menos o cansaço ele nos deixa sentir. Quando
chego a letra F tudo que eu quero é uma cama, estou exausto, faminto e mal
consigo raciocinar. No entanto, a esperança de estar chegando perto me faz
continuar. Me pergunto se os outros estão tão exaustos quanto eu.
Finalmente chego ao final do corredor e,
nenhum sinal da letra G. Olho para trás desanimado, sei que não tenho forças
para voltar tudo isso. Me apoio em um dos armários e vou me arrastando até me
sentar no chão. Menos de um minuto depois Vallery grita:
— Achei! Letra G! Sigam a minha voz! —
Vallery parece estar no lado oposto do salão, o que não faz muito sentido.
— Eu vou matar quem organizou esse lugar! —
resmungo enquanto me levanto.
Mesmo exausto, continuo seguindo os gritos
dela, tenho que acabar com essa maldita tarefa antes que o efeito da poção
passe, ou estamos fodidos. Sou o último a alcança-la e, pareço ser o mais
cansado. Nas mãos da Vallery tem uma pasta, ela logo trata de a arremessar para
mim. Gerard Alexis Rewthus, é tudo que dizia na capa.
— É esse? — Vallery pergunta.
— Sim. Como soube o sobrenome dele?
— Eu olhei um por um. Nessa pasta aqui, fala
um bocado de você.
Não tenho tempo para perguntar o quanto ela
leu ou se isso mudou o que ela pensa sobre mim. Apenas me sento no chão e encaro
a pasta, sem ter certeza do que fazer. Dentro dela tem diversas informações
pessoais sobre meu guardião e junto delas uma foto dele — de como era pouco
antes de morrer — bem no topo. Enquanto leio acabo descobrindo algumas coisas
que Gerard nunca me contou: sua alergia a abacaxis, seu pequeno vicio em
apostas, as lutas que ele venceu mesmo estando em desvantagem numérica, o fato
do Rei Lenos ser amigo dos pais dele e o tratar como um irmãozinho na infância
e, como ele era apaixonado por minha mãe.
Fecho a pasta por alguns instantes para
digerir isso. Será que foi por esse amor que ele aceitou me criar? Será que era
por isso que ele não me abandonou mesmo depois de ver que eu era uma aberração?
E se minha mãe tivesse sabido disso? Teria o escolhido? Será que eles poderiam
ter fugido juntos e me criado? Seriamos uma família feliz vivendo naquela
pequena fazenda? Me odeio por ficar fantasiando num momento desses!
— Como vai tirá-lo daí e pôr na garrafa? — Z
me tira dos devaneios.
— Boa pergunta.
Abro a pasta novamente e toco a foto do meu
guardião, desejando que pudesse tê-lo por perto para me aconselhar.
Então algo acontece: uma intensa luz branca
invade o lugar e, quando consigo voltar a enxergar estou de volta a cabana onde
ele me criou. Meu coração para por um segundo, não consigo acreditar que estou
mesmo vendo ele. Gerard está bem aqui, do exato jeito que me lembro dele na
minha infância: alto, forte, com uma barba maior do que deveria, sorrindo
tranquilamente enquanto realizava as tarefas.
— Eu achei que nunca fosse te ver de novo!
Não consigo me conter e corro para
abraçá-lo. Me sinto como uma criança de novo, como se os quase mil anos sequer
tivessem existido.
— Dymas? O que faz aqui? Você morreu? —
Gerard me afasta, preocupado. — Você ainda é muito jovem para estar morto...
— Nós temos muito que conversar — respondo,
acanhado.
Gerard foi aquele que me ensinou a lutar
pelo que era certo, não sei o que ele vai pensar de mim depois de saber de tudo
que eu fiz ou o que pretendo pedi-lo. Tenho medo de decepcioná-lo.
— Melhor nós entrarmos, acabei de assar um
pato e, se não me engano, é o seu favorito — ele bagunça meu cabelo, do mesmo
jeito que fazia toda vez que sentia orgulho de mim.
Meus olhos ficam marejados, mas seguro as
lágrimas, não é hora disso.
— Aqui tem comida? Espera, você precisa
comer?
— Precisar, eu não sei, mas não tem muito
mais o que fazer por aqui — ele conta, antes de passar pela porta, assim que
sento o cheiro tomar meu nariz antes mesmo de entrar. — Eu passo todos os dias
caçando ou concertando a casa. Às vezes, só fico deitado na grama observando as
estrelas.
— Já tentou ir para longe? Chegar à capital,
quem sabe?
— Não consigo ir além da floresta, sempre
que tento, acabo aqui. Então já deixei isso pra lá — Gerard dá de ombros. —
Acho que tem formas piores de passar a eternidade.
— Então você sabe mesmo que morreu...
Eu achei que as pessoas no paraíso ficariam
em paz, não sei se saber que morreram e ficar isolados pela eternidade está incluso
nisso.
— Não faz essa cara. Vamos comer — Gerard vai
até a mesa e arranca uma das cochas do pato sem muita delicadeza. — Estar morto
não é tão ruim, só me sinto solitário as vezes.
— Eu nunca acreditei no céu ou no inferno,
sempre pensei que fossem apenas invenções das pessoas — pego a outra cocha e
mordo um pedaço, não sei como é possível, mas o sabor é exatamente como eu me
lembrava e, ao engolir me sinto completamente satisfeito. — Mas sempre pensei
que se o céu existisse, deveria ser um lugar onde as pessoas pudessem se reunir
com aqueles que amam. Ficar sozinho para sempre é tão... errado!
— Eu também pensei que veria meus pais ou
meus irmãos, mas talvez eu mereça ficar sozinho — ele responde, cabisbaixo. —
Eu os deixei de lado durante a rebelião, nunca voltei atrás para saber se eles
haviam sobrevivido. Falhei com eles.
— Porra nenhuma! Você foi a melhor pessoa
que eu conheci! Eu só lamento nunca ter podido te agradecer o quanto merece por
ter cuidado de mim! — me exalto na mesma hora. — Você não precisava, podia ter
me abandonado, mas não o fez, nem mesmo quando viu que tinha algo de errado
comigo! Se tem alguém que merece ficar junto de quem ama, esse alguém é você!
Só percebi que meus olhos estavam cheios de
lágrimas quando senti elas começaram a escorrer pelo meu rosto. Droga.
— Ter você aqui já me deixa feliz — Gerard
mais uma vez bagunça meu cabelo, e isso me faz querer chorar ainda mais. —
Embora eu preferisse que você vivesse mais alguns anos. É realmente uma pena
que não tenha conseguido retomar o trono...
— Quanto a isso... — faço uma pausa
hesitante, depois aponto para as duas únicas cadeiras da casa. — Melhor se
sentar, tenho muito o que explicar.
Conto a ele tudo o que aconteceu desde sua
morte, não deixo de lado o que eu fiz ao reino nem minha real identidade.
Quando termino, o pato assado já não parece mais tão apetitoso.
— Então você é mesmo filho do Diabo? — ele
pergunta, mas no seu tom de voz não tem nenhuma raiva ou mágoa. — Droga, não
acredito que aquele Bispo maldito estava certo... — Gerard larga o osso com uma
boa quantidade de carne sobrando. — E não sobrou nadinha da capital? Nada que
possa ser reconstruído?
— Infelizmente, não. Depois do que eu fiz,
não tinha mais ninguém para defender o território, então ele foi tomado por
outras nações e hoje em dia é parte da Bulgária. E nem eles têm coragem de
chegar perto da capital — conto, sem conseguir olhá-lo nos olhos. — Estive lá
recentemente, continua uma cratera de cinzas — ergo o olhar por um instante,
com medo do que estou prestes a perguntar. — Você tem raiva de mim por isso?
— Não, raiva não é a palavra certa. eu fico...
triste. Saber que aquele desgraçado te forçou a esse ponto... tantas
pessoas morrendo sem necessidade... nossa terra natal...
— Espera! Você não acha que a culpa foi
minha? Eu fui lá mesmo sabendo do perigo... foi o meu poder que destruiu tudo!
— Vou te dizer de novo: você não tem culpa
de ser quem é! — Gerard mantem a expressão firme e não demonstra qualquer
oscilação na voz. — Não é sua culpa não saber controlar um poder que nem sabia
que tinha! Se não tivesse sido forçado, nada disso teria acontecido... — ele faz
uma pausa, pensativo. — O meu colar foi destruído no fogo, não foi?
— Acho que sim, mas por quê? O que o colar
tem a ver com o que aconteceu?
— Aquela mulher tinha me dito que enquanto
você estivesse perto dele, estaríamos seguros... foi depois dela aparecer que
as coisas melhoraram na fazenda. Só pode ter sido isso... — isso é novidade
para mim, ele nunca falou nada sobre o colar, achei apenas que era alguma
herança de família. — Você nunca tinha
feito qualquer coisa parecida antes dele ser destruído. A culpa disso tudo foi
do que fizeram com você!
— Do que você está falando? Que mulher?
— Eu não sei quem ela era. Mas era a mulher
mais bonita que eu já vi, mais até do que sua mãe — o rosto dele fica
ruborizado ao dizer isso, acho que se eu tivesse prestado atenção, teria
descoberto que ele a amava muito tempo atras. — Ela tinha cabelos brancos como
os seus e usava um vestido quase da mesma cor. Ela apareceu em uma noite de
tempestade, chovia tanto que eu pensei que a cabana não ia aguentar. E ela
estava lá, na porta, completamente seca, nem parecia que tinha andado na chuva.
Eu até tentei perguntar quem ela era, mas a mulher não respondeu. Ela foi
entrando e ficou olhando você dormir por um tempo, depois me deu o colar e
disse pra nunca o tirar e que ele ia nos proteger — quanto mais ele falava mais
desconfiado eu ficava. — Foi dito e feito, assim que eu o coloquei a tempestade
parou. Depois disso foi como se a terra na fazenda voltasse a ganhar vida. Os
animais pararam de morrer, as plantações pararam de dar frutos podres... até o
ar parecia mais limpo...
— Então não foi mesmo coincidência tudo que
aconteceu antes de eu nascer... — não sei mais o que pensar a respeito do meu
passado. — E mesmo assim vai me dizer que não é minha culpa?
— Se você estivesse controlando isso, até
que eu poderia culpá-lo — Gerard dá de ombros. — Mas sua mãe acreditava que
você havia nascido para fazer o bem, e eu concordo com ela. Você nunca gostou
de ferir os animais que nós caçávamos e, às vezes, até me impedia quando
encontrávamos uma mãe com filhotes. Quando você era pequeno, dizia que queria
se tornar o rei. Sabe para que? Para ajudar a todos e corrigir os erros do Rei
Lenos! Você não tinha nem 8 anos quando disse isso! Não vejo maldade em você.
Dymas! Se fosse cruel, contaria sobre o que aconteceu sorrindo e se orgulharia
de ter matado aqueles que te feriram, mas sente justamente o oposto! Precisa
parar de se prender a essa culpa!
— Se você soubesse o que eu já fiz... o que
eu tenho que te fazer... o que eu vim te pedir...
Tapo o rosto com as mãos, não consigo mais
impedir as lágrimas. Ninguém fala comigo do mesmo jeito que ele, ninguém
acredita tanto em mim e na minha bondade. E eu... não esperava isso. Sempre
achei que se ele soubesse o que fiz iria me odiar, me chamar de monstro e dizer
que se arrependia de ter cuidado de mim. Mas aí ele faz o oposto... eu não mereço
o perdão dele!
— Você me contou que fez esse pacto para
salvar esses garotos, não foi? — só consigo assentir com a cabeça. — Eles são a
sua família agora. Não tem nada de errado em lutar por sua família!
— Mesmo se essa luta acabar libertando meu
pai e muita gente morrer por causa disso? Porque se eu for até o fim com isso,
é o que vai acontecer!
— Então não deixe! Eu te ensinei melhor que
isso! — ele tira minhas mãos da frente do meu rosto, me impedindo de me
esconder. — Se algo não está certo, mude! É esse o dever de um rei! Você pode
não ter conseguido proteger nosso lar, mas agora tem uma segunda chance! Não
existem apenas dois caminhos!
— Então... você quer que eu liberte meu pai?
E depois? Tento convencê-lo a não destruir o mundo? Como? Peço por
favor?
— Mostre a ele que existe um caminho melhor.
Puna aqueles que mereçam, proteja os fracos. E se não puder fazê-lo enxergar
isso... o impeça — pisco algumas vezes, perplexo. — Eu acredito que você tenha
o poder para fazer isso.
Tenho medo de que meu poder só vá piorar
tudo... não posso controlá-lo...
— Você não acabou de dizer que tem alguém
querendo te ensinar? Não estou dizendo para confiar nesse homem, ele não parece
ser digno disso. Mas você pode usá-lo, aprenda o que puder com ele e esteja
pronto. É o único jeito de parar de ter medo.
— Eu... — tem tanto que ainda quero dizer a
ele, tanto que ainda quero perguntar, mas começo a ouvir as vozes dos garotos
me chamando e, eles parecem aflitos. — Queria poder ficar mais e conversar com
você, mas realmente preciso ir... eles estão me esperando.
— Eu entendo. Precisa protegê-los — Gerard
sorri, orgulhoso. — Fico feliz que não esteja sozinho. Mesmo que tenha demorado
tanto tempo para encontrar essa família.
— É, eu também — esboço um leve sorriso. —
Sei que vai soar estranho, mas você pode entrar nessa garrafa? — estendo minha
mão e destampo o frasco, sem saber bem o que acontece a seguir.
— Hmm... como faço isso?
— Acho que é só tocar nela. Zuhiel não deu
nenhuma instrução...
Gerard se aproxima e, com a ponta de seu
indicador toca a abertura da garrafa. Seu corpo começa a reluzir até se tornar
um tipo de fumaça esbranquiçada que é sugada para o recipiente. Mal tive tempo
de fechá-la e já estou de volta ao grande salão, os garotos me encaram confusos
e preocupados.
— Porra, você quase nos matou do coração! —
Vallery me acerta um peteleco na testa.
— O que foi que aconteceu? Você sumiu! — Z
pergunta, sacudindo a barra da minha camisa.
— É uma longa história. Posso contar quando
dermos o fora daqui — olho para a ficha do Gerard, sua foto sumiu. — Pelo visto
deu certo.
— Vaa-vai mesmo dar aque-quela marca para
ele?
— Vou. Se quisermos sair dessa, vamos ter
que jogar o jogo do Zuhiel por um tempo — antes que eu possa explicar a eles o
meu plano, sou interrompido por um som estridente que parece muito com um
alarme. — Acho que fomos notados!
— E agora? Sem o portal... — Vallery
questiona, depois tira seu canivete do bolso.
— Venham. Por aqui — a voz infantil nos chama,
do fundo do salão.
Não há outra escolha senão a seguir. até
então ela tem ajudado, não acho que nos levaria até uma armadilha. Nós corremos
o mais rápido que conseguimos. Consigo ouvir o som de passos se aproximando,
não dá para dizer quantos. Um novo portal surge quando alcançamos a parede, não
penso duas vezes antes de atravessá-lo. Só resta torcer para que não sermos
seguidos.
Dessa vez não senti nada, simplesmente
ressurgi de volta no laboratório. Meu equilíbrio está abalado, então espero
todos retornarem, antes de acertar um soco bem no meio da cara do Zuhiel.
Infelizmente, não parece causar qualquer dano a ele.
— Seu filho da puta! Você fechou o portal!
Ia deixar a gente lá? — questiono, com meus olhos brilhando intensamente.
Tento dar outro soco, mas ele segura minha
mão, com mais facilidade do que eu gostaria de admitir.
— Não fiz isso de propósito — ele responde,
calmamente. — Alguma coisa interferiu com o feitiço, alguma coisa poderosa o
bastante para bloquear até mesmo as minhas tentativas de refazê-lo — ele me
larga, lentamente. — Vejo que conseguiu completar a tarefa — seus olhos se
voltam ao frasco, que está emanando luz.
— Não graças a você — me afasto,
contrariado.
— E agora? — Vallery pergunta,
— Basta libertá-lo, depois você deve
oferecer a ele a marca da corrupção — Zuhiel tira do bolso interno de seu terno
um medalhão formado por dois triângulos entrelaçados com um corte no meio.
— Só isso? Sem feitiço nem nada? — Z
questiona, decepcionado.
Toda a mansão treme. Através da janela consigo
ver o céu ser tomado por um show de luzes brancas, douradas e azuis. Rajadas de
vento começaram a surgir de todos os lados, parece até que um furacão está
prestes a se formar. Lá no alto eu consigo ver o anjo vestindo sua armadura
dourada e tem apenas um par de asas. Ele está segurando um escudo em uma mão e
uma espada na outra, ambos feitos de algum tipo de energia luminosa. Quando as
asas dele batem, o teto da mansão é arrancado como se fosse de papel. Todos —
exceto Zuhiel — são jogados no chão e não sobra uma única prateleira em pé.
— Faça sua parte — Zuhiel joga o medalhão
para mim. — Eu vou ensinar esse anjo a ter bons modos.
O corpo dele começa a emanar uma aura de
pura escuridão, seu terno se parte à medida que o corpo dele se expande, sua
pele negra começa a ser coberta de escamas avermelhadas, em sua cabeça dois
chifres curvados para cima começaram a surgir, nas costas dele um par de asas
esqueléticas se abrem e, com um único movimento o levam ao céu.
— Que porra é essa? — Z pergunta, com os
olhos arregalados.
Zuhiel acerta um soco no escudo do anjo e a
ilha inteira treme, se ele estava tentando nos manter no chão, conseguiu. Harvey age primeiro e se coloca sobre o
Duncan e o Z para protegê-los. Já a Vallery corre até mim e me ajuda a
levantar.
— Ainda acha que não precisa dos seus
poderes? — ela pergunta, apontando para cima.
— Eu já mudei de ideia sobre isso. Fiquem
aqui e se protejam! — pulo para fora do laboratório e caio bem abaixo da
batalha. — Odeio ter que fazer isso, mas...
Destampo o frasco e, aos poucos a fumaça
presa dentro dele flutua para fora tomando lentamente a forma do meu guardião —
mas agora ele é uma imagem translucida brilhante, chego a conseguir ver através
dele. Ergo minha mão com o amuleto.
— Gerard, meu mentor e guardião. Eu lhe
ofereço a marca da corrupção e peço que você a aceite — não sei se é exatamente
assim que devia fazer, Zuhiel não é lá um bom instrutor.
— O que? — a voz dele parece dispersa, como
se não compreendesse o que está acontecendo. Demorou um pouco até que ele finalmente
reagir. — Eu... aceito.
Ele toma o amuleto e o coloca no pescoço. A
luz que o envolve começa a ganhar tons de vermelho que vão ficando cada vez
mais escuros, como se ele estivesse sendo absorvido pelas mesmas chamas que
ficam em volta de mim quando perco o controle.
De repente, meu braço direito começa a doer
de uma forma que eu nunca senti antes, como se ele estivesse sendo rasgado de
dentro para fora por uma lâmina feita de fogo. Caio no chão sem conseguir
controlar os urros de dor enquanto um símbolo começa a surgir na minha pele.
— Tanto poder... — a voz do meu guardião
parece carregada de sofrimento, como se até falar causasse dor. Ele olha para
mim, depois na direção da batalha. — Eu acredito em você, Dymas. Sempre
acreditei. Sei que fará o que é certo!
Ele não me dá a chance de responder — nem
sei se eu conseguiria fazer algo além de gritar, depois se tornou em um borrão
vermelho e alçou voo em uma velocidade surpreendente. A essa distância não consigo
ver bem, mas Gerard atingiu o anjo, porque de repente Zuhiel é o único a ficar
para trás enquanto eles continuam a subir. Um segundo passa, depois dois, mas
antes de eu contar o terceiro uma explosão vermelha cobre todo o céu.
— Gerard! — grito o mais alto que consigo,
ignorando a dor no meu braço.
— Se recomponha — Zuhiel aparece do meu
lado, sua aparência regrede aos poucos ao que era antes. — Isso não é o
suficiente para matar um anjo, ele só conseguiu nos dar algum tempo.
— Seu filho da puta sem coração! — tento me
levantar, mas todo meu corpo parece ser feito de gelatina, meus músculos
simplesmente não obedecem. — O que...
— Pelo visto o veneno começou a fazer efeito
— Zuhiel me puxa pelo colarinho com apenas uma mão. — Melhor aplicar o antidoto
antes que vocês se transformem numa poça de sangue e ossos.
— Então o prazo que você deu...
Tento manter o foco, mas minha visão começa
a embaralhar as cores e criar figuras abstratas, que nesse momento estão
chamando muito mais a minha atenção.
— Se vocês não voltassem a tempo, estariam
mortos de toda forma — Zuhiel responde, sem qualquer emoção.
Nós simplesmente aparecemos no laboratório,
ou eu acho que foi assim que cheguei lá. Não consigo pensar direito a respeito.
—
Beba — escuto alguém ordenar, mas precisei de várias algumas tentativas para
acertar o frasco na minha boca.
Após um longo gole, sinto que aos poucos as
cores estão parando de dançar ao meu redor. Demoro um pouco mais para lembrar
que os outros também precisam do antidoto. Corro até cada um deles e faço com
que eles bebam, meu coração está acelerado, com medo de que fosse tarde.
— Você podia ter nos matado! — esbravejo,
depois de garantir que todos estai se recuperando. — Que merda tem na cabeça?
— Você também viu o que um único anjo pode
fazer — ele responde, friamente. — Não vou me desculpar por tomar precauções
para a minha segurança.
Percebo que ele está olhando em volta, como
se os danos a sua mansão valessem mais do que nossas vidas.
— E de que isso adiantou? Ele ainda nos
achou! Gerard teve de se sacrificar para nos salvar! Porque você nem é forte o
bastante para isso!
— Aquele homem já estava morto, não tem
sentido se lamentar por ele — Zuhiel massageia seu braço direito, parece ter se
ferido na batalha. — E se não quiser desperdiçar o tempo que ele nos deu, é
melhor calar a boca e deixar que me concentre.
— O que vai fazer?
— Mover a ilha para outro lugar, depois
reforçar os ocultamentos. Se ele voltar, não vai estar sozinho, seremos presas
fáceis — ele faz uma pausa, como se quisesse ter certeza de que eu entendia a
situação. — Como você pôde ver, não sou um demônio feito para a guerra.
— Sobre isso... — respiro fundo, é outra decisão
que não vai ter volta. — Quero aprender a usar meus poderes.
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