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Herdeiros do Caos - O Lamento do Príncipe capítulo 10

O paraíso não é bem o que eu imaginava.

 

Por um instante tudo ficou preto, perdi completamente a noção de espaço, também não conseguia ouvir nada. Comecei a entrar em pânico, achando que Zuhiel tinha me mandado para algum tipo de armadilha, mas então senti meu corpo sendo empurrado e puxado em milhões de direções diferentes ao mesmo tempo. De repente, tudo parou e não havia nada além do vazio. Quando voltei a raciocinar estava no meio de um corredor branco sem fim repleto de portas douradas. 

— Isso é o céu? — pergunto em voz alta.

— Parece um escritório — Vallery é a primeira a surgir do meu lado. — Um escritório futurista, como nos quadrinhos que o Z lê.

— Será que as almas estão em uma dessas portas? — Z surge logo depois.

— Vamos ver — tiro o cristal do bolso e o aponto na direção da porta mais próxima, mas nada acontece. — Pelo visto, não.

  Acho que vo-vou... — Duncan surge atrás de nós, antes de conseguir terminar a frase vomita no chão, sujando nossos sapatos.

— Parabéns Dunky Kong, você acabou de chamar o ugo no céu! Que loucura! — Z começa a rir, sem se importar com a sujeira.

Harvey é o último a se juntar a nós. Quando surge pelo portal perde o equilíbrio e cai em cima da Vallery, que acaba derrubando o Z de bunda na poça de vômito. Faço uma careta só de pensar em ficar com aquelas calças até darmos o fora daqui.

— Ah qual é! Vou ter que jogar essa calça fora! — Z se levanta o mais rápido que consegue, depois olha para o próprio traseiro com nojo.

— Be-bem-feito! — Duncan consegue rir, mas ainda parece enjoado. 

— Sem tempo para isso — começo a andar, sacudindo os pés. — Temos de ser rápidos. Quanto antes terminarmos isso, melhor — aponto o cristal para cada uma das portas por onde passo, mas nada acontece.

— Sabe quem vamos levar embora? — Vallery corre para me alcançar. — Dona Dalma, talvez?

— Ela já morreu por minha causa, não vou pedir para ela queimar no inferno também — me entristeço só de pensar nessa ideia. — Vamos procurar pelo homem que me criou. O nome dele é Gerard. Mesmo não gostando disso, sei que ele faria isso por mim.

— Então ele é tipo seu pai? — Z pergunta, andando desajeitadamente atrás de mim.

— É, o mais perto que eu tive de um.

Paro onde o corredor se divide em três. Aponto o cristal para cada um deles e nada. A decisão vai ter de ficar nas mãos da sorte.

— E agora? Nos dividimos? — Vallery pergunta.

— Má ideia. Não sabemos o quanto vamos ter de andar e podemos nos perder na hora de voltar pelo... cadê o portal? — me viro para trás e a única coisa que vejo é a poça de vômito.

— Será que isso foi uma armadilha? — Z pergunta, com os olhos mais cerrados que o de costume.

— Não dá para saber, não confio naquele cara — fecho os olhos, respirei fundo e depois tomo uma decisão. — Vamos nos separar. Vallery e Z pela esquerda, Harvey e Duncan pela direita e eu vou pelo meio. Se encontrarem alguma coisa, gritem. Se virem alguém, corram de volta para cá o mais rápido possível. Entenderam?

Pela primeira vez em muito tempo consegui que todos concordassem sem reclamar. Nos dividimos entre os corredores e começamos a correr. O cristal continua inerte e eu já não sei mais no que pensar. Zuhiel está tentando me enganar? Mas como? Se ele mentisse, eu saberia. Meu poder nunca falhou. Mesmo assim, toda vez que ele abre a boca eu sentia um calafrio, como se meu corpo dissesse para não confiar nele. Nunca me senti assim antes. E é difícil pensar em como me livrar dele enquanto tiver de me preocupar em não quebrar o maldito pacto. Não, não é hora de pensar nisso.

— Por aqui! — de repente, escuto uma voz infantil vindo de uma das portas.

— Vou mesmo cair nessa? — pergunto para mim mesmo, desconfiado. Aponto o cristal na direção da porta e ele finalmente começa a ressoar, fraco, mas é um começo. — Parece que sim.

Abro a porta, atrás dela tem uma escada giratória que desce muito mais fundo do que meus olhos podem ver. Dou o primeiro passo e, na mesma hora a porta atrás de mim desaparece, me deixando sem escolha além de prosseguir.

Continuo descendo pelo que parecem ser horas. Tentei contar os degraus, mas desisti depois de passar da casa dos milhares. Apesar disso, não sinto qualquer sinal de cansaço ou fome desde que cheguei aqui e, não comi nada desde o minúsculo pedaço de torta mais cedo,

Minha real preocupação é o tempo do feitiço. Pelo que o Zuhiel disse, só duraria uma hora. Se ainda não fomos detectados, significa que pelo menos para os padrões do mundo mortal, não se passou uma hora.

— Só mais um pouco — a voz finalmente quebra o silencio.

O cristal começa a emitir um som agudo e a brilhar, acho que estou mesmo chegando perto.

— Lá vamos nós — tiro minha faca do cós da calça, mesmo que ela não funcione contra um anjo, é melhor que entrar desarmado.

Os degraus terminam. Uma enorme porta dourada está na minha frente, as laterais estão repletas de ornamentos e inscrições. Não fico surpreso em conseguir lê-las: Sala de Registros. Empurro a porta e me deparo com centenas, milhares, talvez milhões de armários de arquivos espalhados em um salão que não parece ter fim. E, apesar de não haver nenhuma lâmpada, o lugar não está escuro. Olho em volta e não vejo ninguém. Não é bem o tipo de segurança que eu esperava, mas acho que não tem muitos idiotas invadindo o paraíso.

Enquanto caminho estou checando cada um dos armários e, aparentemente seguem uma ordem alfabética, só que já passei por mais de duzentos armários e ainda não saí da letra D.

— Dy? Você tá aí? — escuto a voz do Z vindo de algum lugar nas redondezas.

Isso é no mínimo estranho, só vi a porta pela qual entrei e, se ela tivesse sido aberta de novo, eu teria ouvido.

— Z? É você?

— Não, imagina, devo ser uma voz na sua cabeça! — a resposta sarcástica me faz ter certeza de que é ele. — Onde você está?

— Letra D. E você?

— Corredor T! Não conhece ninguém com essa letra?

Não! Continua procurando — eu peço, me sentindo meio bobo por ficar gritando sem saber para onde. — E aliás, como veio parar aqui? 

— Eu tam-também queria saber! — dessa vez é o Duncan quem responde.

— Vocês também ouviram uma voz te mandando vir pra cá? — Vallery pergunta, de algum outro lugar.

— Sim, mas de onde eu vim só tinha uma porta! Como vocês entraram?

— Eu... não sei! Numa hora estava correndo com a Val e na outra nós tínhamos nos separado! Depois a voz falou comigo até eu chegar aqui! — Z conta.

— Co-como va-vamos achar o Harvey?

— Harvey, se você tiver por aí, bate em alguma gaveta duas vezes! — grito, pouco depois escuto o barulho de metal ecoando uma, depois duas vezes. — Beleza, agora que estamos todos aqui, tratem de procurar pela letra G!

Tirando o fato de ser o paraíso, é quase como um trabalho comum. Nós temos que correr por aí, achar um objeto valioso, pegá-lo e não ser pegos. E, só para variar, meus amigos estão me ouvindo. Isso sim é algo para se comemorar, embora eu preferisse não os ter trazido junto.

Continuei correndo pelo corredor e, quando finalmente chego na letra E sinto meus pés doerem, o que significa que este salão é diferente do resto, pelo menos o cansaço ele nos deixa sentir. Quando chego a letra F tudo que eu quero é uma cama, estou exausto, faminto e mal consigo raciocinar. No entanto, a esperança de estar chegando perto me faz continuar. Me pergunto se os outros estão tão exaustos quanto eu.

Finalmente chego ao final do corredor e, nenhum sinal da letra G. Olho para trás desanimado, sei que não tenho forças para voltar tudo isso. Me apoio em um dos armários e vou me arrastando até me sentar no chão. Menos de um minuto depois Vallery grita:

— Achei! Letra G! Sigam a minha voz! — Vallery parece estar no lado oposto do salão, o que não faz muito sentido.

— Eu vou matar quem organizou esse lugar! — resmungo enquanto me levanto.

Mesmo exausto, continuo seguindo os gritos dela, tenho que acabar com essa maldita tarefa antes que o efeito da poção passe, ou estamos fodidos. Sou o último a alcança-la e, pareço ser o mais cansado. Nas mãos da Vallery tem uma pasta, ela logo trata de a arremessar para mim. Gerard Alexis Rewthus, é tudo que dizia na capa.

— É esse? — Vallery pergunta.

— Sim. Como soube o sobrenome dele?

— Eu olhei um por um. Nessa pasta aqui, fala um bocado de você.

Não tenho tempo para perguntar o quanto ela leu ou se isso mudou o que ela pensa sobre mim. Apenas me sento no chão e encaro a pasta, sem ter certeza do que fazer. Dentro dela tem diversas informações pessoais sobre meu guardião e junto delas uma foto dele — de como era pouco antes de morrer — bem no topo. Enquanto leio acabo descobrindo algumas coisas que Gerard nunca me contou: sua alergia a abacaxis, seu pequeno vicio em apostas, as lutas que ele venceu mesmo estando em desvantagem numérica, o fato do Rei Lenos ser amigo dos pais dele e o tratar como um irmãozinho na infância e, como ele era apaixonado por minha mãe.

Fecho a pasta por alguns instantes para digerir isso. Será que foi por esse amor que ele aceitou me criar? Será que era por isso que ele não me abandonou mesmo depois de ver que eu era uma aberração? E se minha mãe tivesse sabido disso? Teria o escolhido? Será que eles poderiam ter fugido juntos e me criado? Seriamos uma família feliz vivendo naquela pequena fazenda? Me odeio por ficar fantasiando num momento desses!

— Como vai tirá-lo daí e pôr na garrafa? — Z me tira dos devaneios.

— Boa pergunta.

Abro a pasta novamente e toco a foto do meu guardião, desejando que pudesse tê-lo por perto para me aconselhar.

Então algo acontece: uma intensa luz branca invade o lugar e, quando consigo voltar a enxergar estou de volta a cabana onde ele me criou. Meu coração para por um segundo, não consigo acreditar que estou mesmo vendo ele. Gerard está bem aqui, do exato jeito que me lembro dele na minha infância: alto, forte, com uma barba maior do que deveria, sorrindo tranquilamente enquanto realizava as tarefas.

— Eu achei que nunca fosse te ver de novo!

Não consigo me conter e corro para abraçá-lo. Me sinto como uma criança de novo, como se os quase mil anos sequer tivessem existido.

— Dymas? O que faz aqui? Você morreu? — Gerard me afasta, preocupado. — Você ainda é muito jovem para estar morto...

— Nós temos muito que conversar — respondo, acanhado.

Gerard foi aquele que me ensinou a lutar pelo que era certo, não sei o que ele vai pensar de mim depois de saber de tudo que eu fiz ou o que pretendo pedi-lo. Tenho medo de decepcioná-lo.

— Melhor nós entrarmos, acabei de assar um pato e, se não me engano, é o seu favorito — ele bagunça meu cabelo, do mesmo jeito que fazia toda vez que sentia orgulho de mim.

Meus olhos ficam marejados, mas seguro as lágrimas, não é hora disso.

— Aqui tem comida? Espera, você precisa comer?

— Precisar, eu não sei, mas não tem muito mais o que fazer por aqui — ele conta, antes de passar pela porta, assim que sento o cheiro tomar meu nariz antes mesmo de entrar. — Eu passo todos os dias caçando ou concertando a casa. Às vezes, só fico deitado na grama observando as estrelas.

— Já tentou ir para longe? Chegar à capital, quem sabe?

— Não consigo ir além da floresta, sempre que tento, acabo aqui. Então já deixei isso pra lá — Gerard dá de ombros. — Acho que tem formas piores de passar a eternidade.

— Então você sabe mesmo que morreu...

Eu achei que as pessoas no paraíso ficariam em paz, não sei se saber que morreram e ficar isolados pela eternidade está incluso nisso.

— Não faz essa cara. Vamos comer — Gerard vai até a mesa e arranca uma das cochas do pato sem muita delicadeza. — Estar morto não é tão ruim, só me sinto solitário as vezes.

— Eu nunca acreditei no céu ou no inferno, sempre pensei que fossem apenas invenções das pessoas — pego a outra cocha e mordo um pedaço, não sei como é possível, mas o sabor é exatamente como eu me lembrava e, ao engolir me sinto completamente satisfeito. — Mas sempre pensei que se o céu existisse, deveria ser um lugar onde as pessoas pudessem se reunir com aqueles que amam. Ficar sozinho para sempre é tão... errado!

— Eu também pensei que veria meus pais ou meus irmãos, mas talvez eu mereça ficar sozinho — ele responde, cabisbaixo. — Eu os deixei de lado durante a rebelião, nunca voltei atrás para saber se eles haviam sobrevivido. Falhei com eles.

— Porra nenhuma! Você foi a melhor pessoa que eu conheci! Eu só lamento nunca ter podido te agradecer o quanto merece por ter cuidado de mim! — me exalto na mesma hora. — Você não precisava, podia ter me abandonado, mas não o fez, nem mesmo quando viu que tinha algo de errado comigo! Se tem alguém que merece ficar junto de quem ama, esse alguém é você!

Só percebi que meus olhos estavam cheios de lágrimas quando senti elas começaram a escorrer pelo meu rosto. Droga.

— Ter você aqui já me deixa feliz — Gerard mais uma vez bagunça meu cabelo, e isso me faz querer chorar ainda mais. — Embora eu preferisse que você vivesse mais alguns anos. É realmente uma pena que não tenha conseguido retomar o trono...

— Quanto a isso... — faço uma pausa hesitante, depois aponto para as duas únicas cadeiras da casa. — Melhor se sentar, tenho muito o que explicar.

Conto a ele tudo o que aconteceu desde sua morte, não deixo de lado o que eu fiz ao reino nem minha real identidade. Quando termino, o pato assado já não parece mais tão apetitoso.

— Então você é mesmo filho do Diabo? — ele pergunta, mas no seu tom de voz não tem nenhuma raiva ou mágoa. — Droga, não acredito que aquele Bispo maldito estava certo... — Gerard larga o osso com uma boa quantidade de carne sobrando. — E não sobrou nadinha da capital? Nada que possa ser reconstruído?

— Infelizmente, não. Depois do que eu fiz, não tinha mais ninguém para defender o território, então ele foi tomado por outras nações e hoje em dia é parte da Bulgária. E nem eles têm coragem de chegar perto da capital — conto, sem conseguir olhá-lo nos olhos. — Estive lá recentemente, continua uma cratera de cinzas — ergo o olhar por um instante, com medo do que estou prestes a perguntar. — Você tem raiva de mim por isso?

— Não, raiva não é a palavra certa. eu fico... triste. Saber que aquele desgraçado te forçou a esse ponto... tantas pessoas morrendo sem necessidade... nossa terra natal...

— Espera! Você não acha que a culpa foi minha? Eu fui lá mesmo sabendo do perigo... foi o meu poder que destruiu tudo!

— Vou te dizer de novo: você não tem culpa de ser quem é! — Gerard mantem a expressão firme e não demonstra qualquer oscilação na voz. — Não é sua culpa não saber controlar um poder que nem sabia que tinha! Se não tivesse sido forçado, nada disso teria acontecido... — ele faz uma pausa, pensativo. — O meu colar foi destruído no fogo, não foi?

— Acho que sim, mas por quê? O que o colar tem a ver com o que aconteceu?

— Aquela mulher tinha me dito que enquanto você estivesse perto dele, estaríamos seguros... foi depois dela aparecer que as coisas melhoraram na fazenda. Só pode ter sido isso... — isso é novidade para mim, ele nunca falou nada sobre o colar, achei apenas que era alguma herança de família. —  Você nunca tinha feito qualquer coisa parecida antes dele ser destruído. A culpa disso tudo foi do que fizeram com você!

— Do que você está falando? Que mulher?   

— Eu não sei quem ela era. Mas era a mulher mais bonita que eu já vi, mais até do que sua mãe — o rosto dele fica ruborizado ao dizer isso, acho que se eu tivesse prestado atenção, teria descoberto que ele a amava muito tempo atras. — Ela tinha cabelos brancos como os seus e usava um vestido quase da mesma cor. Ela apareceu em uma noite de tempestade, chovia tanto que eu pensei que a cabana não ia aguentar. E ela estava lá, na porta, completamente seca, nem parecia que tinha andado na chuva. Eu até tentei perguntar quem ela era, mas a mulher não respondeu. Ela foi entrando e ficou olhando você dormir por um tempo, depois me deu o colar e disse pra nunca o tirar e que ele ia nos proteger — quanto mais ele falava mais desconfiado eu ficava. — Foi dito e feito, assim que eu o coloquei a tempestade parou. Depois disso foi como se a terra na fazenda voltasse a ganhar vida. Os animais pararam de morrer, as plantações pararam de dar frutos podres... até o ar parecia mais limpo...

— Então não foi mesmo coincidência tudo que aconteceu antes de eu nascer... — não sei mais o que pensar a respeito do meu passado. — E mesmo assim vai me dizer que não é minha culpa?

— Se você estivesse controlando isso, até que eu poderia culpá-lo — Gerard dá de ombros. — Mas sua mãe acreditava que você havia nascido para fazer o bem, e eu concordo com ela. Você nunca gostou de ferir os animais que nós caçávamos e, às vezes, até me impedia quando encontrávamos uma mãe com filhotes. Quando você era pequeno, dizia que queria se tornar o rei. Sabe para que? Para ajudar a todos e corrigir os erros do Rei Lenos! Você não tinha nem 8 anos quando disse isso! Não vejo maldade em você. Dymas! Se fosse cruel, contaria sobre o que aconteceu sorrindo e se orgulharia de ter matado aqueles que te feriram, mas sente justamente o oposto! Precisa parar de se prender a essa culpa!

— Se você soubesse o que eu já fiz... o que eu tenho que te fazer... o que eu vim te pedir...

Tapo o rosto com as mãos, não consigo mais impedir as lágrimas. Ninguém fala comigo do mesmo jeito que ele, ninguém acredita tanto em mim e na minha bondade. E eu... não esperava isso. Sempre achei que se ele soubesse o que fiz iria me odiar, me chamar de monstro e dizer que se arrependia de ter cuidado de mim. Mas aí ele faz o oposto... eu não mereço o perdão dele!

— Você me contou que fez esse pacto para salvar esses garotos, não foi? — só consigo assentir com a cabeça. — Eles são a sua família agora. Não tem nada de errado em lutar por sua família!

— Mesmo se essa luta acabar libertando meu pai e muita gente morrer por causa disso? Porque se eu for até o fim com isso, é o que vai acontecer!

— Então não deixe! Eu te ensinei melhor que isso! — ele tira minhas mãos da frente do meu rosto, me impedindo de me esconder. — Se algo não está certo, mude! É esse o dever de um rei! Você pode não ter conseguido proteger nosso lar, mas agora tem uma segunda chance! Não existem apenas dois caminhos!

— Então... você quer que eu liberte meu pai? E depois? Tento convencê-lo a não destruir o mundo? Como? Peço por favor? 

— Mostre a ele que existe um caminho melhor. Puna aqueles que mereçam, proteja os fracos. E se não puder fazê-lo enxergar isso... o impeça — pisco algumas vezes, perplexo. — Eu acredito que você tenha o poder para fazer isso.

Tenho medo de que meu poder só vá piorar tudo... não posso controlá-lo...

— Você não acabou de dizer que tem alguém querendo te ensinar? Não estou dizendo para confiar nesse homem, ele não parece ser digno disso. Mas você pode usá-lo, aprenda o que puder com ele e esteja pronto. É o único jeito de parar de ter medo.

— Eu... — tem tanto que ainda quero dizer a ele, tanto que ainda quero perguntar, mas começo a ouvir as vozes dos garotos me chamando e, eles parecem aflitos. — Queria poder ficar mais e conversar com você, mas realmente preciso ir... eles estão me esperando.

— Eu entendo. Precisa protegê-los — Gerard sorri, orgulhoso. — Fico feliz que não esteja sozinho. Mesmo que tenha demorado tanto tempo para encontrar essa família.

— É, eu também — esboço um leve sorriso. — Sei que vai soar estranho, mas você pode entrar nessa garrafa? — estendo minha mão e destampo o frasco, sem saber bem o que acontece a seguir.

— Hmm... como faço isso?

— Acho que é só tocar nela. Zuhiel não deu nenhuma instrução...

Gerard se aproxima e, com a ponta de seu indicador toca a abertura da garrafa. Seu corpo começa a reluzir até se tornar um tipo de fumaça esbranquiçada que é sugada para o recipiente. Mal tive tempo de fechá-la e já estou de volta ao grande salão, os garotos me encaram confusos e preocupados.

— Porra, você quase nos matou do coração! — Vallery me acerta um peteleco na testa.

— O que foi que aconteceu? Você sumiu! — Z pergunta, sacudindo a barra da minha camisa.

— É uma longa história. Posso contar quando dermos o fora daqui — olho para a ficha do Gerard, sua foto sumiu. — Pelo visto deu certo.

— Vaa-vai mesmo dar aque-quela marca para ele?

— Vou. Se quisermos sair dessa, vamos ter que jogar o jogo do Zuhiel por um tempo — antes que eu possa explicar a eles o meu plano, sou interrompido por um som estridente que parece muito com um alarme. — Acho que fomos notados!

— E agora? Sem o portal... — Vallery questiona, depois tira seu canivete do bolso.

— Venham. Por aqui — a voz infantil nos chama, do fundo do salão.

Não há outra escolha senão a seguir. até então ela tem ajudado, não acho que nos levaria até uma armadilha. Nós corremos o mais rápido que conseguimos. Consigo ouvir o som de passos se aproximando, não dá para dizer quantos. Um novo portal surge quando alcançamos a parede, não penso duas vezes antes de atravessá-lo. Só resta torcer para que não sermos seguidos.

Dessa vez não senti nada, simplesmente ressurgi de volta no laboratório. Meu equilíbrio está abalado, então espero todos retornarem, antes de acertar um soco bem no meio da cara do Zuhiel. Infelizmente, não parece causar qualquer dano a ele.

— Seu filho da puta! Você fechou o portal! Ia deixar a gente lá? — questiono, com meus olhos brilhando intensamente.

Tento dar outro soco, mas ele segura minha mão, com mais facilidade do que eu gostaria de admitir.

— Não fiz isso de propósito — ele responde, calmamente. — Alguma coisa interferiu com o feitiço, alguma coisa poderosa o bastante para bloquear até mesmo as minhas tentativas de refazê-lo — ele me larga, lentamente. — Vejo que conseguiu completar a tarefa — seus olhos se voltam ao frasco, que está emanando luz.

— Não graças a você — me afasto, contrariado.

— E agora? — Vallery pergunta,

— Basta libertá-lo, depois você deve oferecer a ele a marca da corrupção — Zuhiel tira do bolso interno de seu terno um medalhão formado por dois triângulos entrelaçados com um corte no meio.

— Só isso? Sem feitiço nem nada? — Z questiona, decepcionado.

Toda a mansão treme. Através da janela consigo ver o céu ser tomado por um show de luzes brancas, douradas e azuis. Rajadas de vento começaram a surgir de todos os lados, parece até que um furacão está prestes a se formar. Lá no alto eu consigo ver o anjo vestindo sua armadura dourada e tem apenas um par de asas. Ele está segurando um escudo em uma mão e uma espada na outra, ambos feitos de algum tipo de energia luminosa. Quando as asas dele batem, o teto da mansão é arrancado como se fosse de papel. Todos — exceto Zuhiel — são jogados no chão e não sobra uma única prateleira em pé.

— Faça sua parte — Zuhiel joga o medalhão para mim. — Eu vou ensinar esse anjo a ter bons modos.

O corpo dele começa a emanar uma aura de pura escuridão, seu terno se parte à medida que o corpo dele se expande, sua pele negra começa a ser coberta de escamas avermelhadas, em sua cabeça dois chifres curvados para cima começaram a surgir, nas costas dele um par de asas esqueléticas se abrem e, com um único movimento o levam ao céu.

— Que porra é essa? — Z pergunta, com os olhos arregalados.

Zuhiel acerta um soco no escudo do anjo e a ilha inteira treme, se ele estava tentando nos manter no chão, conseguiu.  Harvey age primeiro e se coloca sobre o Duncan e o Z para protegê-los. Já a Vallery corre até mim e me ajuda a levantar. 

— Ainda acha que não precisa dos seus poderes? — ela pergunta, apontando para cima.

— Eu já mudei de ideia sobre isso. Fiquem aqui e se protejam! — pulo para fora do laboratório e caio bem abaixo da batalha. — Odeio ter que fazer isso, mas...

Destampo o frasco e, aos poucos a fumaça presa dentro dele flutua para fora tomando lentamente a forma do meu guardião — mas agora ele é uma imagem translucida brilhante, chego a conseguir ver através dele. Ergo minha mão com o amuleto.

— Gerard, meu mentor e guardião. Eu lhe ofereço a marca da corrupção e peço que você a aceite — não sei se é exatamente assim que devia fazer, Zuhiel não é lá um bom instrutor.

— O que? — a voz dele parece dispersa, como se não compreendesse o que está acontecendo. Demorou um pouco até que ele finalmente reagir. — Eu... aceito.

Ele toma o amuleto e o coloca no pescoço. A luz que o envolve começa a ganhar tons de vermelho que vão ficando cada vez mais escuros, como se ele estivesse sendo absorvido pelas mesmas chamas que ficam em volta de mim quando perco o controle.

De repente, meu braço direito começa a doer de uma forma que eu nunca senti antes, como se ele estivesse sendo rasgado de dentro para fora por uma lâmina feita de fogo. Caio no chão sem conseguir controlar os urros de dor enquanto um símbolo começa a surgir na minha pele.

— Tanto poder... — a voz do meu guardião parece carregada de sofrimento, como se até falar causasse dor. Ele olha para mim, depois na direção da batalha. — Eu acredito em você, Dymas. Sempre acreditei. Sei que fará o que é certo!

Ele não me dá a chance de responder — nem sei se eu conseguiria fazer algo além de gritar, depois se tornou em um borrão vermelho e alçou voo em uma velocidade surpreendente. A essa distância não consigo ver bem, mas Gerard atingiu o anjo, porque de repente Zuhiel é o único a ficar para trás enquanto eles continuam a subir. Um segundo passa, depois dois, mas antes de eu contar o terceiro uma explosão vermelha cobre todo o céu.

— Gerard! — grito o mais alto que consigo, ignorando a dor no meu braço.

— Se recomponha — Zuhiel aparece do meu lado, sua aparência regrede aos poucos ao que era antes. — Isso não é o suficiente para matar um anjo, ele só conseguiu nos dar algum tempo.

— Seu filho da puta sem coração! — tento me levantar, mas todo meu corpo parece ser feito de gelatina, meus músculos simplesmente não obedecem. — O que...

— Pelo visto o veneno começou a fazer efeito — Zuhiel me puxa pelo colarinho com apenas uma mão. — Melhor aplicar o antidoto antes que vocês se transformem numa poça de sangue e ossos.

— Então o prazo que você deu...

Tento manter o foco, mas minha visão começa a embaralhar as cores e criar figuras abstratas, que nesse momento estão chamando muito mais a minha atenção.

— Se vocês não voltassem a tempo, estariam mortos de toda forma — Zuhiel responde, sem qualquer emoção.

Nós simplesmente aparecemos no laboratório, ou eu acho que foi assim que cheguei lá. Não consigo pensar direito a respeito.

 — Beba — escuto alguém ordenar, mas precisei de várias algumas tentativas para acertar o frasco na minha boca. 

Após um longo gole, sinto que aos poucos as cores estão parando de dançar ao meu redor. Demoro um pouco mais para lembrar que os outros também precisam do antidoto. Corro até cada um deles e faço com que eles bebam, meu coração está acelerado, com medo de que fosse tarde.

— Você podia ter nos matado! — esbravejo, depois de garantir que todos estai se recuperando. — Que merda tem na cabeça?

— Você também viu o que um único anjo pode fazer — ele responde, friamente. — Não vou me desculpar por tomar precauções para a minha segurança.

Percebo que ele está olhando em volta, como se os danos a sua mansão valessem mais do que nossas vidas.

— E de que isso adiantou? Ele ainda nos achou! Gerard teve de se sacrificar para nos salvar! Porque você nem é forte o bastante para isso!

— Aquele homem já estava morto, não tem sentido se lamentar por ele — Zuhiel massageia seu braço direito, parece ter se ferido na batalha. — E se não quiser desperdiçar o tempo que ele nos deu, é melhor calar a boca e deixar que me concentre.

— O que vai fazer?

— Mover a ilha para outro lugar, depois reforçar os ocultamentos. Se ele voltar, não vai estar sozinho, seremos presas fáceis — ele faz uma pausa, como se quisesse ter certeza de que eu entendia a situação. — Como você pôde ver, não sou um demônio feito para a guerra.

— Sobre isso... — respiro fundo, é outra decisão que não vai ter volta. — Quero aprender a usar meus poderes.

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