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Herdeiros do Caos - O Lamento do Príncipe capítulo 6

 É incrível como uma decisão pode mudar tudo.

 

Vou até o meu quarto para trocar de roupa antes de sair novamente. Do jeito que estou vestido, jamais passaria da porta da prefeitura. Caminho até o armário velho onde guardo minhas roupas e tiro de lá o único par que tenho para esse tipo de situação, protegido por um saco plástico — aqueles que são usados em lavanderias para guardar roupas caras —, e vou logo tratando de vesti-las. As roupas ainda cheiram a amaciante, perco alguns segundos apenas sentindo o aroma de flores misturadas,

Me olho no espelho. Até que eu fico bonito vestido assim — uma camisa branca com botões, um blazer azul-escuro e uma calça social preta —, mesmo que isso não faça diferença alguma para mim. Só que para a prefeita? Isso faz toda a diferença. Ela gosta dos seus brinquedos bem-vestidos.

Olho para os meus pés e tenho certeza de que meus tênis gastos não serviriam. Reviro o armário mais um pouco até encontrar um par de sapatos caros no fundo — prefiro não dizer onde os consegui, ou no pé de quem.

Saio do hospital o mais rápido que consigo, nem me despeço dos garotos. Apesar da prefeita me dever, não vai querer me ajudar assim tão fácil. Nossa elação é repleta de linhas cinzas e favores dos quais não podemos falar. Ela não vai ficar feliz com o que eu estou prestes a pedir.

Eu a conheci pouco depois de chegar a Seattle. Isso tem quase dez anos. Eu não tinha dinheiro, comida ou um lugar para ficar na época. Passava as noites me esgueirando em bares ou boates, esperando alguém beber além da conta para eu poder roubar a carteira sem chamar atenção. Foi numa dessas noites que a conheci. Katherine Sloan.

Naquela época ela era muito diferente, sequer sonhava que um dia se tornaria prefeita. Acho que parte da mudança se deve a mim e as coisas que aconteceram naquela noite. Eu já tinha a observado por horas na pista de dança. Com certeza a mulher mais linda da boate. Cabelos vermelhos presos em um rabo de cavalo, olhos verdes brilhantes que mudavam de cor com as luzes, um sorriso encantador e uma voz mais ainda — cada vez que ela falava com uma de suas amigas meu coração se aquecia. Ela dançava como se não houvesse amanhã; bebia, dava gargalhadas, parecia estar comemorando. Eu, curioso como sou, acabei até me esquecendo do motivo de estar lá. Não demorou para ela começar a falar de como estava feliz por ter deixado seu marido, que daquela noite em diante seria livre e feliz. Eu até que fiquei feliz por ela, Katherine parecia ter tirado um enorme peso dos ombros.

Eu só percebi que estava ficando realmente tarde quando a boate começou a esvaziar e eu perdi qualquer chance de sair dali com alguns trocados. Katherine e suas amigas ainda estavam lá, mas pareciam estar pensando em ir embora. Eu também, já tinha começado a planejar em qual quanto isolado da cidade dormiria naquela noite. Foi então que ouvi gritos do lado de fora. Alguns homens entraram na boate carregando bastões de baseball; eles gritavam, batiam nas paredes, quebravam os copos deixados nas mesas. Os típicos babacas que eu detesto. Eles gritavam o nome de Katherine. Seu marido não tinha ficado feliz com o divórcio. Por isso reuniu os amigos e quis dar uma “lição” nela. O homem agia como se ela fosse sua propriedade e gritava se vangloriando das vezes que tinha batido nela.

Os caras cercaram a Katherine e suas amigas, gritando o que fariam com elas. Por mais que eu pudesse deixar aquilo rolar e esperar a polícia — que com certeza já tinha sido chamada — não me contive. Antes que eles pudessem fazer algo de pior eu corri até o grupo e comecei a derrubá-los um a um. Naquela noite eu descobri duas coisas: lutar de barriga vazia é um saco, meu corpo não queria me obedecer e por causa disso cometi mais erros do que devia. E a outra é que apanhar de um taco de baseball é algo que não quero repetir nunca mais.

Quando a briga acabou eu era o único de pé — como sempre —, mas estava coberto de hematomas roxos e sangue escorria de diversas partes do meu corpo. Katherine e suas amigas me encaravam surpresas, sem acreditar que um garoto mirradinho havia acabado de derrubar seis homens musculoso e armados.

— Você está bem? — Katherine correu até mim, preocupada.

Eu ia responder alguma coisa confiante e sedutora, mas ouvir as sirenes me fez mudar de ideia.

— Preciso ir embora — foi tudo que consegui dizer.

Eu não queria, nem podia estar ali quando os policiais começassem a fazer perguntas. Não queria ter de fugir de novo, não quando finalmente tinha alguma chance de estabelecer uma vida.

— Vem comigo, me deixe cuidar disso — ela se referiu aos machucados, que estavam demorando a curar, talvez por causa da fome.

Eu não neguei. Percebi que precisava de ajuda para me levantar. Katherine me levou até seu carro pouco antes dos policiais entrarem na boate. Ela passou todo o caminho até a farmácia me agradecendo sem parar, dizendo que salvei a vida dela e de suas amigas. Por mais que fosse verdade, eu apenas disse para que ela não se preocupasse com isso e que eu só quis ajudar.

— Você fez mais que muitos homens — ela disse, quando o carro parou. — Sabe, eu gostaria de lutar por um mundo onde nenhuma mulher tenha que passar por isso. Mas... não sei como. Nem se é realmente possível.

— Os únicos que podem realmente mudar o mundo, são aqueles com poder — não queria desencorajá-la, mas sim mudar sua perspectiva. — Se quer mesmo mudar as coisas, vai ter que chegar o mais perto possível do topo.

Me lembro de Katherine me olhando primeiro como se eu fosse um louco arrogante, mas depois foi como se ela refletisse e entendesse. O espanto em seu olhar deu lugar a uma determinação, um desejo de mudança que não ia se apagar. Sei que depois de comprar um kit de primeiros socorros e cuidar de meus machucados, ela já estava pensando no seu próximo passo. Sua única pergunta foi se eu a ajudaria. Eu concordei, mesmo sem saber exatamente com o quê.

Naquela noite pude dormir no sofá dela, foi a melhor recompensa possível. Isso e o café da manhã caprichado do dia seguinte. Acordei ouvindo uma ligação. Katherine se demitiu naquela manhã. Desde então ela começou a lutar contra a violência doméstica e qualquer outro tipo de agressão as mulheres. Ela fundou ongs; grupos de apoio, uma empresa de telefonia só para mulheres e muito mais. Seu nome ganhou peso, apelo, seu rosto ficou conhecido rapidamente e não demorou nem dois anos para ela conseguir seu primeiro cargo público. Chegar à prefeitura não foi uma surpresa.

Mas o que o resto das pessoas não sabem é que todo esse sucesso de Katherine sempre teve uma ajuda especial da minha parte. Cada vez que um obstáculo surgiu no caminho dela — um concorrente, maridos ciumentos a ameaçando, problemas legais e qualquer outra coisa que atrapalhasse suas campanhas — eu tinha de dar um jeito. Das primeiras vezes ela achou que eram coincidências, mas não demorou para que percebesse que era só falar de algum problema comigo para que ele sumisse. Na verdade; isso só fez ela gostar ainda mais de falar sobre eles.

Não que eu matasse todos; essa era uma medida drástica para os irredutíveis ou que eram ameaças reais a vida dela, mas eu conseguia convencê-los a mudar a atenção para outras coisas, mesmo que tivesse de oferecer favores igualmente sombrios. E era por isso que, mesmo não querendo, ela iria me ajudar.

— Katherine está? — pergunto para a recepcionista, assim que entro.

A mulher de meia idade e óculos circulares me olha feio; como se eu não pertencesse ao lugar, do mesmo jeito que os seguranças me olharam na porta.

— A Prefeita está sim — ela me corrige com bastante superioridade. — Você tem hora marcada? — a pergunta não tem entusiasmo, ela só quer me enxotar daqui.

— A Prefeita Sloan sempre tem tempo para mim — sorrio, deixo claro que não me importo com seu desprezo.

— Nome? — ela ajeita seus óculos, sua outra mão pousada no telefone.

— Dymas Sinclair. Basta dizer a ela que eu preciso de um favorzinho, senão será ela que vai precisar de um favorzão.

Ela suspira, resignada. A ligação para o escritório não dura nem trinta segundos e ela parece ainda mais descontente quando termina.

— Ela o aguarda. Os seguranças vão escoltá-lo.

— Não é necessário. Já conheço bem o caminho — a expressão contrariada, me faz rir.

Ando pelo prédio sentindo os homens caminharem atrás de mim; as mãos perto das armas como se eu fosse uma ameaça, não me importo com isso, já estou acostumado com esse tipo de olhar.

Chego ao segundo andar. Paro diante da porta de mogno que me separa do escritório, penso em bater, mas ela se abre antes. Uma mulher — linda, de longos cabelos negros, lábios vermelhos, olhos castanhos claros e usando um vestido branco marcando todas as suas curvas — sai de lá. Ela me encara por três exatos segundos, sorri, depois continua a andar. Katherine estava do lado de dentro, ela envelheceu um bocado nesses últimos anos, provavelmente uma consequência do estresse e da correria de seu trabalho.

— É melhor ser rápido — Katherine diz, cansada. Acho que não cheguei em bom momento.

— Boa tarde para você também, Senhora Prefeita — tento sorrir, ser simpático, pelos velhos tempos.

— Já te disse para não vir aqui durante o dia — ela não desfaz a carranca, sinto que algo a incomoda, além de mim. — Explicar suas visitas é no mínio... complicado.

Ela apoia o quadril na mesa, os braços cruzados, o olhar menos tenso. Com quase cinquenta anos, ela ainda é muito atraente, preciso dizer.

— Vai dizer que não gosta de me ver? — eu me aproximo, nossos rostos a centímetros um do outro. — Que isso não te enche de tesão? — acaricio o rosto dela, nossos olhares se cruzam e ela toma a iniciativa do beijo.

— A essa altura — ela me empurra. — Você já deveria saber que quem manda sou eu — ela se levanta, apenas para me fazer tomar o seu lugar, eu sorrio, gosto disso. — Por mais que eu goste das suas visitas... — seu indicador toca meu rosto e desce até chegar em meus lábios. — Essa realmente não é uma boa hora para tê-lo aqui. Seu amigo, o da mão de ferro, está me pressionando. Ele quer que eu derrube o hospital, está ansioso para transformá-lo em um prédio comercial ou algo do tipo.

— Ele tem falado diretamente com você? — isso me surpreende. — O que aquele cara pensa que está fazendo? Será que vou ter que arrancar a outra mão dele?

— Detestaria que você provocasse o meu novo maior contribuinte — ela me empurra ainda mais para o centro da mesa, derrubando papéis canetas e bottons da campanha. — Estou interessada no cargo de governadora, isso vai custar caro, muito caro.

Ela beija meu pescoço; minha orelha, meus lábios, tudo muito rápido. Acho que ela quer me distrair da preocupação, mas não adianta muito.

— Minha ajuda não é o bastante? Até agora, não te vi reclamando — questiono, isso a faz parar. Levo minha mão para sua cintura a puxando ainda mais para perto, me aproximo de sua orelha para perguntar: — Será que tem se divertido com ele também? Isso me deixaria com ciúmes.

— Não me faça rir — me acalmo com a resposta. — Nem todo dinheiro daquele homem me faria tocá-lo. — ela faz uma careta com a ideia e nós dois rimos. — Infelizmente, o seu tipo de ajuda é mais sutil — suas mãos adentram a minha camisa. — E, por mais que eu goste de ver meus inimigos caindo um atrás do outro... financeiramente falando, não é tão durável — ela me larga e caminha para trás.

— Então é assim? Depois de quase dez anos fazendo seu trabalho sujo. Vai simplesmente me trocar por aquele idiota? — desço de cima da mesa, nossa brincadeira acabou.

— Não fique zangado, sabe que não é pessoal — seu tom me lembra o quanto ela mudou nesses anos. — Deveria me agradecer por conseguir enrolar o idiota com uma tal “licença municipal”, que a propósito, não existe — ela sorri e ajeita o terninho cinza escuro. — Estou te dando todo o tempo que consigo, mas mais cedo ou mais tarde, vai ter que deixar aquele hospital amaldiçoado para trás.

— Ah, você me conhece. Sou muito apegado as minhas coisas — respondo, enquanto ajeito minhas roupas, tento parecer descontraído, mas não consigo esconder o incomodo. — Aquele lugar foi a primeira casa que encontrei em muito tempo. Não vou deixá-lo ser tomado de mim, não por causa do Mão de Aço.

— Às vezes você consegue ser tão... sentimental — ela revira os olhos, mas tem um pouco de empatia em seu olhar. — Deveria ter aceitado minha ajuda antes. Poderia ter conseguido uma casa decente para você e suas serpentes — é, somos chamados assim, as Serpentes do Beco Saint Annie. Não sei bem porque, além de a minha jaqueta ter o desenho de uma cobra, mas não a uso tanto assim. — Um hospital amaldiçoado não é lugar para criar aquelas crianças.

— Mas é onde posso protegê-los. Impedir que sejam separados, ou pior. Pelo menos a maioria deles. Vallery está com problemas e preciso da sua ajuda. Agora.

— Se veio pedir que eu a solte, perdeu seu tempo — ela dá a volta e se senta na cadeira acolchoada. — Não tenho como acabar com a investigação. Já estão falando disso nos jornais. Tentar varrer para debaixo do tapete levantaria perguntas.

— Nada tão drástico — respondo, sorrindo. — Só quero poder vê-la. Do resto eu cuido.

— Está mesmo dizendo para a Prefeita que pretende libertar uma prisioneira? — ela levanta uma das sobrancelhas, acusando. — Espero que saiba que não vou poder fazer nada se o comissário decidir ir atras do seu grupinho depois.

— Eu só preciso entender o que aconteceu.  Ainda não sei o que vou fazer.

— Vou fazer algumas ligações — ela diz, sem muito ânimo — Você vai poder vê-la. Espero que se comporte.

— E desde quando eu me meto em confusão? — a pergunta a faz rir. — Obrigado, Katherine, de verdade.

— Venha até minha casa quando resolver isso. Assim você pode me agradecer, de verdade — ela pisca para mim e sinto que estamos numa boa. — É bom relembrar os velhos tempos de vez em quando.

— Você não é a única que sente falta, Sra. Prefeita — pisco de volta para ela. — Só mais uma coisa antes de eu ir: quem era aquela mulher de vestido branco? Tive uma impressão forte dela.

— Agora sou eu quem vai ficar com ciúmes — ela me encara, com reprovação.

— Não tenho tempo para pensar nisso. Só fiquei curioso.

— Se quer mesmo saber, ela é uma conselheira de campanha. Parece que eu posso expandir o eu alcance se fizer algumas concessões em umas pautas — ela faz uma pausa. — Mas tem uma coisa, Dymas, ela também estava interessada em saber do Hospital.

— Deu algum motivo?

— Ela só disse que o lugar tem potencial, se nós nos livrarmos da infestação de pragas que tem lá.

— Entendi, mais alguém que quer ferrar comigo. Vou ficar de olho. Mas um problema por vez. Obrigado de novo e vou te ver assim que resolver as coisas.

Eu saí depois disso. Não podia gastar mais tempo na prefeitura. Por mais que esses momentos ao lado de Katherine sejam interessantes, tenho que cuidar de Vallery primeiro.

Mais uma vez corri pela cidade. Tudo que estava acontecendo não podia ser coincidência. Zuhiel aparecer justamente no memento em que o Mão de Aço começou a agir tinha cara de armação. Ele precisa de mim. Vai procurar cada brecha que possa usar, tudo para que eu tenha de recorrer a sua ajuda. Acabei me tornando um perigo para os meus amigos. Mas o que eu posso fazer? Qual decisão tomar para reverter isso?

Não. Não é nisso que eu deveria estar pensando. Primeiro preciso conversar com a Vallery, ter certeza do que aconteceu lá dentro. Depois, se eu estiver certo e isso tudo for uma grande armação, preciso libertá-la. Mesmo que tenhamos de deixar Seattle para trás, e talvez o país.

Acho que vou ter que me afastar dos meus amigos de qualquer forma. Assim que eles estiverem seguros eu pretendo sumir, pelo menos até o dia que o Zuhiel falou. Se ele perder esse alinhamento, terá de esperar outros mil anos.

Dessa vez fiz algumas paradas para fumar no caminho até a delegacia. Preciso estar o mais calmo possível. Não posso fazer nada brusco, independente de como for a conversa.

Chego na delegacia suando, meu blazer já está grudando no meu corpo, a calça pinica em lugares desagradáveis e sinto meu relógio cerrando meu pulso. Ignoro tudo isso e entro.

— Não sei como conseguiu isso — o Sargento Ramirez vem até mim. — Mas é melhor ir logo. O capitão não ficou feliz.

— É tão bom ser querido — dou uma risada, ofegante. — Posso vê-la agora? Estou com pressa. E pela forma que os policiais me olham, eles também.

— Sim. Mas seja rápido — o Sargento me guia pela delegacia. — Muitos aqui estão ansiosos para te prender — ele faz uma pausa, se aproximou de mim. — Alguns que tem um amigo em comum com você.

Finalmente tenho a confirmação de que o Mão de Aço tem amigos na polícia. Só assim para continuar escapando de tudo que ele tem feito.

— Sua amiga está na sala de interrogatório D, passou o dia todo aí — ele para no corredor.

— E o que descobriram?

— Os capangas do seu amigo dizem que foi ela que atirou no jardineiro — ele conta. — Vallery diz que foram eles. Mas as duas histórias estão confusas e cheias de inconsistências. Se conseguir algo que faça sentido, talvez a ajude, do jeito certo.

Concordo com a cabeça e depois entro na sala. Vallery está sentada na cadeira. Seus olhos estão vermelhos, acho que de tanto chorar. Seus braços algemados nas pernas da mesa. Não consigo ver nenhum sinal de ferimento nela, então não deve ter tido uma luta antes do disparo, isso me intriga ainda mais.

— Você demorou — é a primeira coisa que ela diz. — Trouxe algo para comer?

— É isso que você tem para me dizer?! — não consigo evitar levantar a voz. — Passei o dia inteiro correndo de um lado para o outro, preocupado com você! E a sua primeira pergunta é: “Tem algo para comer?” — bato na mesa de metal, frustrado. — Vá se foder! Sua burra do caralho! Mas no que é que você estava pensando?! Como foi se meter nessa merda?!

— Nem vem ficar bravinho! — ela grita de volta. — Você não estava lá! Não sabe o que aconteceu!

— Eu sei sim! Você fez exatamente o que eu falei para não fazer! E aconteceu exatamente o que eu disse que ia acontecer! — meus olhos brilham, estou furioso, não tem um pingo de arrependimento na voz dela.

— Eu nunca disse que ia seguir suas regras idiotas! — escuto o barulho das algemas se mexendo embaixo da mesa, se ela estivesse solta, nós brigaríamos. — Você se acha melhor porque tem algumas regrinhas, grande coisa. Roubo é roubo! Nós somos ladrões! E eu não vejo por que ficar indo atras de migalhas, se nós podemos fazer serviços que realmente dão dinheiro!

Eu respiro fundo e olho para a câmera. Não sei se ela grava o som, mas se for o caso, Vallery acabou de falar mais do que deveria.

— E olha como deu certo! — balanço a cabeça negativamente. — Deve estar muito orgulhosa de si mesma! Deve ter adorado matar aquele cara!

É o memento perfeito para jogar a isca. A próxima resposta é tudo que importa. todas as minhas decisões serão tomadas a partir disso.

— Eu matei porque aquele monstro estava vindo atras da gente — meus olhos se apagam assim que escuto isso, fico confuso. — Eu não sei o que ele era, mas não ia deixar que me pegasse!

— O que? De que porra você tá falando? — me sento na cadeira na frente dela. — Explique isso, por favor.

Agora você me escuta, né? — sinto um ar vitorioso em sua voz. Se suas mãos não estivessem algemadas, ela teria mostrado o dedo para mim, provavelmente deve estar fazendo isso embaixo da mesa. — Quando nós chegamos, a casa estava vazia. Você sabe que não sou burra. Nós checamos, várias vezes. Estava tudo limpo e o trabalho ia ser rápido. Nós só íamos abrir o cofre e tirar um pouco do dinheiro e umas ações, nada que fizesse o Senador dar muita falta — ela faz uma pausa, apenas para recuperar o fôlego. — Nós já estávamos terminando de guardar tudo na mochila. Eu já estava pensando no que poderíamos comprar com essa grana toda, talvez até um jogo novo para o Z, sapato novos para o Duncan, que está precisando bastante, ou até um gerador para aquele maldito hospital. Foi aí que o jardineiro apareceu, do nada. Não teve barulho do portão abrindo, de passos pela casa, da porta do escritório... ele simplesmente apareceu. Eu não sei o que ele era, mas... seus olhos estavam amarelos, brilhando tanto que pareciam estar pegando fogo! Pareceu até quando você fica bravinho, só que ele parecia louco, juro! — Zuhiel vem na minha mente na mesma hora. — Até aí, nada demais para mim. Os idiotas se assustaram e eu ia deixá-los para trás e fugir com toda a grana. Só que... Dymas, nunca vi nada tão estranho na vida! As portas começaram a bater, as luzes piscaram e o cara começou a se contorcer e gritar umas coisas que eu não consegui entender. Depois disso ele correu na nossa direção, mordeu o braço do Boca Torta com tanta força que eu pensei que iria arrancá-lo. O Ted tava tão assustado que não ia fazer nada! Eu peguei a arma dele e atirei quantas vezes consegui! Por isso fiquei assustada depois! Aquele homem parecia... possuído!

A história dela faz muito mais sentido. Vallery realmente o matou, mas para se proteger. Sei disso porque ela não contou nenhuma mentira.

— Você já viu algo assim? — ela me pergunta logo depois.

Não. Mas tenho uma ideia do que pode ter acontecido. Acho que pode ter sido por minha causa — desvio o olhar, me sinto péssimo por pensar que ela faria algo assim sem um bom motivo. — Por que não contou nada disso aos policiais?

— Vou ter que te lembrar de novo que não sou burra? De jeito nenhum eles iriam acreditar nisso. Mas sei que se as histórias não baterem, vai ser mais difícil para eles montarem um caso.

Isso me faz sorrir, ela é mais inteligente do que eu pensava.

— Você... sempre me surpreende. Devia ter me dito isso logo de cara. Eu não teria gritado feito um otário.

— Porque eu te conheço. Sei que você precisava gritar antes de conseguir me ouvir — ela está certa. — Acho que agora você já consegue voltar para casa mais calmo.

— E você acha que vou te deixar aqui depois de saber disso tudo?

— Agora é você quem está sendo idiota — ela me encara. — Nós dois sabemos que se você fizer alguma besteira só vai piorar a situação. E alguém precisa cuidar daqueles garotos.

Ela me deixou sem fala. Me sinto ainda pior por ter suspeitado dela horas atrás. Esse tempo todo Vallery não só pensou nas consequências, mas colocou os outros em primeiro lugar.

Ela continua:

— Só diz para o Z não fazer mais nenhuma besteira, tá? — ela desvia o olhar. — Eu sei que ele não te escuta, mas diz que fui eu que mandei, talvez assim funcione.

— Diga você mesma — eu me levanto, satisfeito com nossa conversa. — Nós somos uma família, você gostando ou não. E não se abandona a família — ela ergue o olhar, vejo surpresa e alívio misturados. — Não fique tão surpresa. Não é porque nós brigamos que eu deixo de me importar.

—  Só tem um problema? Mesmo se você tentar me ajudar, não sei se vou durar muito tempo aqui.

— Como é?

— Eu ouvi os guardas conversando sobre desligarem as câmeras da minha cela. Eles riram e fingiram ser só brincadeira, mas... acho que vão tentar alguma coisa essa noite. Eu sou uma ponta solta do Mão de Aço. Ele vai querer me apagar.

— Não vou deixar isso acontecer... eu posso...

— Não. Não sem tirar os garotos do hospital. Se você tentar me tirar daqui a força, as coisas podem dar muito errado. Não quero colocar os outros no meio do fogo cruzado.

— Mas que saco. Pensei mal de você hoje, fiquei imaginando o pior e olha só você, mais preocupada com os outros do que com sua segurança...

— Vai a merda! Só não quero que mais ninguém se ferre por minha causa.

— Sei — sorrio. — Eu vou mandar os garotos para longe, talvez peça a Dona Dalma para tira-los da cidade por uns dias. Mas vou voltar por você, ainda hoje. Vou te tirar daqui e depois... dar um fim naquele desgraçado.

— Vê se não faz merda.

— Essa fala é minha — respondo e me viro na direção da. — Não fale com mais ninguém. Não confie nos policiais daqui. Se precisar, lute.

Foi a última coisa que disse antes de sair. Ainda não sei como, mas vou tirar ela da delegacia. Se não tiver jeito, terei de tentar ativar meus poderes, ainda tem uma pequena fagulha, eu só... preciso ficar com raiva o bastante. E mesmo sabendo que daqui para frente não vou ter descanso tão cedo, estou feliz. Consegui a resposta que tanto queria.

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