Isso aconteceu há quase 1000 anos.
Os eventos que levaram a queda da Larvênia
começaram com meu pai — ou o homem que diziam ser o meu pai. O Rei Lenos
Sinclair. Até pouco antes do meu nascimento, dizem que ele era um homem bom,
justo e honrado. Eu não tenho ideia do motivo da mudança, mas sei que se tornou
desconfiado, cruel e sedento por conquista. O reino já estava sofrendo com o
que pareciam ser pragas — os rios estavam secando, as plantações murchando, os
animais morrendo, minas desabando, doenças surgindo e se espalhando, e isso só
para começar — e ao invés de tentar solucionar os problemas que eles já tinham,
ele decidiu procurar mais.
Sei que não foi de um dia para o outro que
isso tudo aconteceu. Mas de repente, Larvenia estava em guerra com todos os
reinos vizinhos. Os soldados foram mandados para morrer em batalha e a
população que ficou estava morrendo de fome. Mesmo com isso tudo, o rei
simplesmente não se importava e ainda aumentou os impostos para poder financiar
a matança. Não tenho ideia do que faz um homem mudar assim, mas sei que o reino
estava quase entrando em colapso e, se não fosse minha mãe gastando o dinheiro
da sua família para socorrer o povo, Larvênia teria caído muito antes. Eu nem
me surpreendo com o rumo que as coisas tomaram. Acho até que os plebeus
demoraram muito para reagir.
Foi pouco depois do meu batizado que a
situação se tornou insustentável. Um bispo de muito longe tinha vindo para
realizar a cerimônia, mas acho que ninguém contou a ele sobre meus olhos — meus
lindos olhos vermelhos, que até hoje assustam as pessoas.
O homem enlouqueceu assim que me viu. Ele
gritou, esperneou, fez o sinal dá cruz e declarou que tudo que o reino vinha
sofrendo era minha culpa. Acho que as pessoas acreditaram. Não demorou mais que
uma semana para os camponeses se organizarem. Um cochicho aqui, uma reunião as
escondidas ali, umas armas surripiadas no meio da noite no arsenal e lá estavam
eles prontos para a revolução.
A maioria dos soldados estava fora, lutando,
morrendo. O palácio não tinha um contingente para se defender e, nem contava
com o fato de haver traidores lá dentro para abrir os portões. Se fosse em
outra época, talvez o Rei Lenos tivesse percebido o que estava para acontecer,
mas naquela altura, ele já estava louco, delirando com a ganância e o poder
ilusório da coroa.
Foi um massacre sem precedentes para o meu
reino. Eu sequer posso culpar o povo, eles estavam desesperados, famintos,
caindo aos pedaços. O homem que deveria liderá-los e protegê-los havia quebrado
sua confiança e segundo o bispo, tinha um filho demônio a tiracolo. Meu único e
verdadeiro pesar com o que aconteceu naquela noite foi a morte da minha mãe. Eu
queria ter a conhecido, queria poder me lembrar de seus braços, sua voz, seu
cheiro, seu sorriso. Mas tudo que tive foram histórias e um único retrato que
vi durante minha vida.
O que soube sobre ela é que além de ser muito
gentil, era esperta. Assim que percebeu o que estava acontecendo me entregou
para o seu soldado mais leal. Ela sabia que os camponeses não ficariam
satisfeitos até matar toda a realeza, mas quis me poupar a todo custo — me
pergunto se eu teria morrido quando bebê, talvez tivesse ido para o mesmo lugar
que ela, mas nunca vou saber,
Gerard era o nome dele, meu guardião,
protetor, o homem que me criou e me ensinou tudo que sabia. Ele é o mais
próximo que eu tive de um pai. É graças a ele que sei o que aconteceu nos
momentos finais da realeza. Ele não queria abandonar minha mãe — toda vez que
me contava a história seus olhos se enchiam de lágrimas —, mas não teve
escolha. Os aldeões estavam prestes a derrubar as portas da biblioteca, se ele
não entrasse na passagem secreta, jamais conseguiria fugir.
Como eles mataram meus pais eu não sei, nem
quero saber. Não gosto de pensar nisso. Meu suposto pai até podia merecer, mas
minha mãe, não. Até hoje não consigo perdoá-los por terem a tirado de mim tão
cedo.
Sei que Gerard seguiu pelos corredores no
interior do castelo até sair em um dos túneis de esgoto — latrinas enormes que
passavam por debaixo do castelo, para ser mais preciso —, toda vez que ele
contava torcia o nariz, dizia que o cheiro ficou em sua armadura por semanas.
Depois de escapar da barbárie ele pegou o primeiro cavalo que encontrou e saiu
de lá galopando o mais rápido que podia. Ele me contou que o percurso durou
dois dias e duas noites inteiras — com pouquíssimas paradas para o cavalo poder
beber água e recuperar o folego —, até conseguir chegar à cabana onde me criou.
Ele atravessou todo o bosque dos assombrados,
onde os camponeses iam para morrer quando perdiam as esperanças, os pântanos
repletos de crocodilos famintos, as campinas sem cor e finalmente conseguiu
chegar a pequena cabana de inverno que pertencia a família da minha mãe. Um
lugar em que os plebeus não pensariam em nos procurar.
As primeiras semanas foram simplesmente
horríveis. Gerard não tinha ideia do que fazer com uma criança, ele era um
guerreiro, afinal. E se não bastasse meu choro, ter de me limpar e arranjar
comida para mim, ele ainda tinha de fazer isso tudo sem parar de prestar
atenção nos arredores. O medo de termos sido seguidos o perseguiu por meses. Ele
nunca me contou como as coisas melhoraram ou como nossa pequena plantação
conseguia ir tão bem enquanto o reino continuava a morrer. Eu sei que tinha
algo a ver com meus poderes, só não sei como ele pôde me controlar, porque
mesmo agora isso é impossível para mim.
Não consigo achar que foi mera coincidência o
Rei Lenos a mudar durante minha gestação, as pragas também começaram a surgir
nessa época. E sabendo o que eu posso fazer quando estou com raiva, até consigo
acreditar que aquele bispo estava certo sobre mim. Talvez eu fosse mesmo uma criança-demônio.
Cresci naquela fazenda por quase 14 anos sem
nunca conhecer nada além dos seus arredores. O mais longe que já tinha ido era
no riacho que ficava a dois quilômetros de distância, e isso sempre junto do
meu guardião. Nesses anos ele sempre me contava histórias sobre o reino, sobre
minha mãe, as vezes sobre o meu suposto pai. Todas as noites antes de me pôr
para dormir contava algo fascinante, as vezes sobre si mesmo e suas aventuras
antes de se tornar o protetor da minha mãe.
Durante esses anos Gerard me ensinou a ler:
escrever, lutar, caçar, pescar, tudo o que eu fosse precisar para sobreviver e
me tornar forte. Ele acreditava de todo coração que um dia eu iria conseguir
retomar o trono, mesmo que tudo que tivéssemos fosse nós dois e nossa força de
vontade.
Naquela época eu ainda não tinha descoberto o
quanto eu era perigoso. Tirando o fato de os animais não gostarem quando eu me
aproximava demais, eu não tinha motivos para achar que era diferente. Pior,
como eu só conhecia o Gerard, ainda não sabia que ter cabelo branco e olhos
vermelhos era algo fora do comum.
E durante esses 14 anos eu fui feliz, o
máximo que poderia ser nessas circunstâncias. Contudo, sempre achei que faltava
algo. Não poder me afastar da cabana, não conhecer mais nenhuma pessoa, viver
sempre com a ideia de que pessoas que eu nem conhecia podiam me querer morto...
eu me sentia preso, confuso e assustado. Eu queria explorar o mundo, queria
saber se o que o Gerard me contava era verdade, porque teve uma época que eu
cheguei a duvidar. Ele me falava do perigo de sair mundo a fora, que minha
cabeça seria caçada e que as pessoas me atacariam assim que soubessem quem eu
era.
Eu me sentia péssimo por duvidar da pessoa
que me criou, da única pessoa que eu amei e sabia que me amava naquela época.
Talvez possa ter sido parte da rebeldia da adolescência, mas não consegui mais
aguentar as lições, os treinos, trabalhar na plantação, tudo isso me cansava. Eu
cometi o grande erro de fugir. Mereci tudo que aconteceu depois disso.
Gerard tinha saído para cavalgar e checar os
arredores, como fazia todas as manhãs antes de começarmos nosso dia. Eu sempre
estava dormindo nessa hora — quase sempre ele saía antes do sol nascer —, mas
naquele dia eu sequer tinha fechado os olhos. Passei horas escondido embaixo do
cobertor esperando minha chance de escapar. Assim que ouvi o relinchar do
cavalo coloquei minhas botas e sai correndo pela porta.
Se eu sabia para onde ir? Não tinha ideia.
Nós estávamos tão longe da capital que eu sequer conseguia ver o palácio no
horizonte. Só que, nas histórias, Gerard sempre falava do Norte, das colinas
que cercavam a capital e do enorme rio que cruzava o meio da cidade. Então eu
usei minha pouca noção geográfica e saí sem sequer ter um plano do que fazer
quando chegasse. Corri, sempre olhando para trás com medo dele sentir minha
falta. Eu só queria saber ver rostos novos, conhecer o reino onde nasci, ver se
ele era como nas histórias que eu ouvia. Não imaginei que eu sequer chegaria à
capital.
Acho que corri uns 10 quilômetros através do
solo desolado antes de me topar com aqueles homens: quatro soldados vestindo
armaduras parecidas com a do Gerard, acho que deviam estar caçando ou
patrulhando, sinceramente não sei.
Eu tremi, ainda me lembro bem da sensação.
Meu coração batia rápido, eles ainda não
tinham me visto. Havia uma pedra grande onde eu poderia me esconder, mas não
foi isso que eu fiz. Fui ingênuo, idiota e se não fossem meus poderes... teria
sido o meu fim.
— Ei! Vocês estão vindo da capital? —
eu corri até eles, mesmo com o nervosismo, não achei que fossem me reconhecer.
Eles não responderam. Me olharam de cima a
baixo, cochicharam algo, mas eu não percebi o que estava prestes a acontecer,
achei mesmo que havia alguma chance de serem gentis.
— Mas quem diabos é esse? — um deles
perguntou.
— O cabelo dele é mais branco que os pelos do
saco do meu avô — comentou outro, antes de cuspir no chão.
— Os olhos dele — o mais baixo apontou para
mim. — São vermelhos... ele deve estar doente! Não o deixem chegar
perto!
— Vocês são todos burros? — perguntou aquele
que parecia ser o líder. — Nunca ouviram as histórias? — na mesma hora eu
entendi que estava com problemas, eles sabiam quem eu era, mas não consegui
correr, minhas pernas não me obedeciam. — Ele só pode ser o Principe
Demônio, o que destruiu nosso reino — engoli em seco aquelas palavras. — É
muita sorte termos chegado aqui nesse exato momento. Seremos os salvadores da
Larvenia!
— Você acredita no papo do bispo? — perguntou
o soldado que tinha falado do meu cabelo. — Aquilo são só histórias para
o povo poder culpar alguém. Meus pais viviam dizendo que o Príncipe Demônio
viria me pegar se eu não me comportasse. Mas olha para ele, é só uma
merdinha qualquer.
Não gostei do que ele disse. Lembro que senti
vontade de esmurrá-lo, mas estava criando coragem para fugir, torcendo para
alcançar Gerard antes deles me pegarem.
— Aí, garoto — o líder começou a caminhar na
minha direção e eu a andar para trás. — Qual o seu nome? De onde veio? — apesar
da voz gentil, ele tinha puxado a espada.
— De... lugar nenhum. E já estou
voltando para lá — não sei de onde saiu a coragem para dizer isso.
Tudo que eu me lembrava era das lições com
Gerard, sobre não demonstrar medo aos oponentes, nem mesmo diante da morte
certa.
— Olha só, o pirralho é engraçadinho —
comentou o mais baixo.
— O que acha de darmos uma lição nele? —
outro deles sugere, o sorriso dele transbordava crueldade.
— Só não vamos matá-lo — disse o líder. —
Talvez o bispo possa fazer algum exorcismo para nos livrarmos das pragas. Vamos
ser condecorados como heróis! Todos vão gritar nossos nomes enquanto o reino
durar! — nos olhos dele eu só consegui ver ambição, eu não passava de um troféu.
Assim que um deles começou a correr eu fiz o
mesmo. Com medo ou não, ainda não queria morrer, não tendo vivido e conhecido
tão pouco. Nos segundos que levaram até um deles me alcançar eu rezei para o
deus de que Gerard tanto falava, implorei por misericórdia, jurei nunca mais desobedecer
ao meu guardião, só queria sair dali vivo.
Eu estava tentando subir a colina para voltar
na direção da fazenda quando o mais alto dos soldados tentou me agarrar. Eu
sabia que não ia conseguir fugir correndo, então a única saída era lutar o
quanto podia. Me abaixei bem na hora que os braços dele iam fechar o laço em
volta do meu corpo, depois disso me joguei com tudo em suas pernas e nós dois
rolamos colina abaixo. Nós acabamos atingindo os outros três na descida e tudo
virou um caos de gritos, rangidos metálicos e ossos se quebrando.
Eu consegui me levantar primeiro, os soldados
tinham sido pegos de surpresa e ainda estavam confusos — além disso, eles eram
mais pesados por causa da armadura —, a vantagem era minha, mesmo sentindo algo
fora do lugar na minha perna direita. Voltei a subir a colina, dessa vez com
esperança de escapar, que tolo eu fui. Senti algo me perfurar pelas costas com
tanta força que me jogou no chão. Eu me lembro de gritar, nunca tinha sentido
tanta dor; na verdade, nunca tinha me machucado até aquele momento. Ver meu
sangue escorrendo me apavorou, sentir a flecha presa dentro do meu corpo,
atravessando meus órgãos, me deixou em um estado de pânico onde nem conseguia
mais pensar.
Tudo que eu sabia é que iria morrer e que não
tinha mais ninguém para culpar. Meu único pesar era não poder me desculpar com o
Gerard.
Os soldados caminharam na minha direção, não
tinham pressa. Seus olhares eram de raiva, ódio, desprezo. Eu simplesmente não
conseguia entender como desconhecidos conseguiam me olhar assim, como se eu
fosse culpado por tudo de ruim em suas vidas. Eu consegui me levantar, nem sei
como. Ia tentar correr, mas outra flecha me acertou no ombro e eu voei longe,
só parei quando acertei uma rocha, a flecha cravada nas minhas costas chegou a
ser empurrada para fora do meu corpo com a força do impacto. Eu cuspi sangue e
me senti fraco, cansado, vazio.
— Tem sorte de queremos te levar vivo — disse
o líder, mas eu não imaginava como conseguiria sair daquilo com vida, meus
olhos já estavam ficando pesados. — Senão. eu teria atravessado uma flecha bem
nesses seus olhos de demônio!
Ele atirou mais uma flecha, não sei para que,
eu não iria me mover de qualquer forma. A terceira acertou meu pulso direito e
o prendeu no chão, não consegui gritar, não tinha forças.
— O que... — com muito custo consegui dizer,
meus olhos estavam cheios de lágrimas, mas meu maior sentimento naquele momento
era indignação. — O que foi que eu te fiz?!
Minha voz ecoou pela colina, algo mudou em
mim naquele momento, não sei dizer bem o quê.
— Mas que pergunta idiota! — o líder
debochou. — Você destruiu nosso reino, nossa casa! As pessoas morrem de fome,
de doença, não há dinheiro, não há ajuda! Estamos fodidos por causa das
guerras que seu pai arranjou! Estou cansado de perder pessoas que amo sem poder
fazer nada!
Eu queria odiá-lo pelo que fez comigo, mas
não consegui. Me senti culpado, acreditei nele, acho que ainda acredito.
Ele continuou:
— Vou lhe entregar ao bispo e espero que ele
te faça sofrer tanto quanto nós sofremos, antes de te mandar para o inferno!
Eu já nem achava que chegaria tão longe com
os ferimentos que tinha recebido. E ele ainda começou a me chutar com toda a
força que podia — um homem com o dobro do meu tamanho. Qualquer parte do meu
corpo que não estava doendo antes disso passou a competir com as perfurações
das flechas. Eu nunca tinha visto tanto sangue, nem mesmo quando Gerard matava
algum animal para nós comermos.
Em algum momento senti mais pares de pés se
juntando ao do líder. Acho que eles acabaram desistindo da ideia de me levar
vivo, ou foram tomados pela fúria, realmente não sei. Meus olhos já estavam tão
inchados que tudo que eu conseguia ver eram borrões. Minha orelha zumbia, minha
cabeça latejava, não tinha como pensar. Só queria que tudo acabasse logo.
Depois de ver como aquele homem me odiava,
até achei que merecia o que estavam fazendo comigo. Acreditei que minha morte
salvaria o reino e cheguei a sorrir quando perdi a consciência. Não sei por
quanto tempo apaguei, mas quando meus olhos abriram de novo vi um dos soldados
caídos no chão, morto com uma flecha cravada entre seus olhos. O mais baixo não
estava muito longe de mim, ele tentava tapar o buraco em sua garganta, mas sua
pele estava perdendo a cor e sua respiração falhando.
Demorei para conseguir girar a cabeça e ver
Gerard enfrentando os outros dois. Ele tinha vindo me salvar, mesmo depois de
eu tentar fugir. Eu teria sorrido. se conseguisse. Não consegui acompanhar os
movimentos, ele lutava com muito mais vontade e urgência do que em nossos
treinamentos. Eu só conseguia ver as espadas se cruzando, um golpe ou outro
acertando alguém, mas não descobri o que derrubou o primeiro soldado — o que tinha
comentado do meu cabelo —, só sei que ele desabou no chão e não se levantou de
novo.
Gerard olhou na minha direção e sorriu, como
se quisesse dizer que ia ficar tudo bem. O líder tentou aproveitar esse momento
para acertá-lo, mas foi o erro dele, meu guardião desviou e cravou sua espada
em sua nuca e a puxou logo em seguida. Me espantei com o quão fácil ele podia
matar alguém. Mesmo sendo as pessoas que tinham me ferido, era difícil imaginar
o homem calmo e gentil que me criou tirar a vida de uma pessoa a sangue frio e
sem demonstrar qualquer sinal de remorso. Talvez isso tivesse a ver com o
código de cavaleiro que ele vivia falando — algo que só fui entender anos mais
tarde—, nós não fazíamos o que gostávamos, mas sim o que precisávamos fazer
para proteger aqueles que eram importantes.
— Dymas... — ele se aproximou de mim com os
olhos arregalados, tanto seu rosto como seu torso apresentavam cortes e ele
cambaleou até chegar perto de mim.
Por alguns instantes ele apenas parou na
minha frente com um olhar pesaroso, de quem havia falhado em sua missão. Foi
assim que eu soube que deveria ter morrido, que aqueles ferimentos estavam além
do que qualquer humano poderia suportar.
Gerard segurou minha mão dizendo que ia ficar
tudo bem, quase como se estivesse se despedindo de mim. Ele chorou. Eu chorei.
E de repente, ele saltou para trás assustado. Eu demorei para entender. Precisei
ver a primeira flecha cair do meu corpo para perceber que os ferimentos estavam
se fechando. A dor começou a diminuir e foi como se nada disso tivesse
acontecido.
— O que está acontecendo comigo, Gê? — eu
perguntei desesperado, tão assustado quanto ele. — O que tem de errado
comigo?
— Eu não sei — ele tentou parecer calmo, mas
me lembro do espanto escrito em seu rosto. — Realmente não sei, garoto.
— Aqueles soldados... disseram que a culpa é minha!
— eu contei, não sei se minha voz saiu direito naquela hora, eu chorei tanto
que senti meu nariz escorrendo e os soluços tomarem conta de mim. — Eles
disseram que fui eu que causei tudo de ruim! É verdade?!
Meu coração se partiu naquela hora. Gerard
estava com medo de mim. E isso só confirmou tudo de ruim que eu estava
sentindo.
— Dymas — ele começou, mas parou, como se
estivesse preparando cada palavra que ia dizer a seguir. — Você não tem
culpa de ter nascido. Nem do que aconteceu com nosso reino. Você só pode ser
culpado por suas ações. Você já fez algo ruim?
Gerard voltou a se aproximar e olhava em meus
olhos, o medo parecia ter ido embora e ele tinha a mesma expressão de quando
queria me ensinar alguma coisa.
— Eu fugi. Mesmo sabendo que era
errado, que seria perigoso — encolhi os ombros, até então tinha sido a primeira
vez que contrariei as instruções do meu guardião. — Não devia ter feito isso.
— Não, não devia — apesar da
preocupação, ele sorriu. — Mas isso não te torna uma pessoa ruim. Querer viver
nesse mundo, fazer parte dele, não é errado — ele estendeu a mão para
mim e eu a aceitei. — Só não chegou o momento certo, ainda.
— E quando vou estar pronto? — eu perguntei,
enquanto olhava para os soldados mortos, triste com tudo que eles me fizeram e
por eles terem morrido.
— Quando você for mais alto que eu — aquela
resposta me deixou contrariado, Gerard tinha quase dois metros de altura e eu
mal tinha um metro e meio na época.
— Gê... o que eu sou?
— O meu príncipe. O futuro rei da Larvenia —
ele respondeu na mesma hora. — Isso é tudo que me importa.
Eu não disse mais nada na volta para casa,
ele também não. Nunca mais tentei nada parecido. Naquela manhã eu não só
descobri que a as histórias eram verdade, como também percebi que tinha algo
diferente em mim — algo que ia muito além da cor dos cabelos e olhos. Depois
desse dia comecei a ter pesadelos todas as noites por quase um ano. Os soldados
sempre surgiam em meus sonhos, me culpando, acusando, querendo me matar.
Eu conversei com Gerard sobre isso, ele me
disse que enquanto tivesse medo eles continuariam a me assombrar e que a única
forma de me ver livre seria enfrentá-los. Foi o que eu comecei a fazer. De
início eu só rebatia as acusações, me defendia, me mantinha de pé diante deles
sem hesitação. Mas depois, comecei a enfrentá-los, partir para cima,
destruí-los. Comecei a gostar disso e até mesmo ia dormir ansioso para vê-los.
Os pesadelos acabaram sumindo.
Talvez tenha a ver com minha mudança de
atitude, ou com os treinamentos exaustivos que eu vinha tendo — ao invés de se
assustar com minha habilidade regenerativa, Gerard quis testá-la — então quando
eu ia me deitar estava tão exausto que simplesmente desabava.
Os anos se passaram, eu cresci mais, fiquei
mais forte, mais esperto, mais corajoso. Era quase um homem, como Gerard vivia
dizendo. Meu medo de partir para o mundo lá fora foi substituído por uma
necessidade de desbravá-lo, de tomá-lo em minhas mãos. Meus últimos dias na
cabana foram repletos de discussões com meu guardião a respeito disso. Eu
queria ir embora; tomar o reino de volta, já ele, só queria me proteger, achava
que eu nunca estaria pronto para a missão.
Não sei se ele tinha medo do que eu poderia
fazer com os camponeses — que tomaram o reino — ou o que eles poderiam fazer
comigo, mas a cada ano que passava Gerard ficava mais cauteloso, preocupado. Quando
ele adoeceu, alguma coisa mudou.
Até hoje não sei ao certo que doença o afligiu.
Só sei que ele passou a ter febres altas; quase não conseguia sair da cama,
vivia tossindo sangue, suas mãos tremiam tanto que ele nem conseguia comer
sozinho. Toda minha vontade de partir foi substituída pelo desejo de que ele
ficasse bem. Cheguei a rezar barganhando sobre isso, mas de nada adiantou.
— Sua mãe ficaria tão orgulhosa do
homem que você se tornou... — nunca esquecerei nossa última conversa. — Eu
queria tanto poder te ver subir ao trono... — seus olhos mal ficavam abertos. —
Temo que não terei essa chance...
— Pare com isso, seu velho idiota! — eu não
queria chorar, queria ser forte para ele, segurar sua mão até o fim para que
partisse em paz, mas não consegui controlar, quando a primeira lágrima veio,
trouxe junto uma inundação. — Você vai ficar bem! Só precisa descansar!
É claro que era mentira, até para mim mesmo.
Já haviam se passado três semanas e ele só fazia piorar.
— Um homem deve saber a sua hora de partir —
ele conseguiu sorrir, parecia tranquilo, conformado. — Ele também deve saber a
hora de lutar pelo que é certo.
Eu franzi o cenho sem entender. Gerard
apontou para sua armadura — que sempre ficava guardada no canto da sala, pronta
para ser vestida se preciso —, depois para sua espada em cima da mesa e então
tirou o cordão do pescoço, um pingente de prata, lindo, que sempre me fascinou:
uma espada com uma serpente enrolada nela.
— Leve com você. Espero que possam ajudar em
sua jornada — sua mão segurou a minha com toda a força que ele tinha. — Espero
que minha armadura possa te proteger e que minha espada derrote os inimigos em
seu caminho. Sei que você está destinado a grandeza, Dymas.
— Não diga isso! — pedi, enquanto sentia o
calor se esvaindo do corpo dele. — Não quero ir a lugar algum sem você!
— Na minha bolsa tem um mapa — ele me
ignorou. — A capital está marcada nele, não deve ser difícil encontrá-la.
Eu sacudi a cabeça em negação, não queria que
ele me apoiasse nisso, não desse jeito. Preferiria ter mais vinte anos
discutindo se era ou não uma boa ideia, desde que ele continuasse vivo.
— Você precisa mostrar a eles que estão errados
sobre você — ele acrescentou. — É o seu dever. Precisa restaurar o
reino, protegê-lo...
— Eu não sei por onde começar! Preciso
de você! — implorei. — Não posso ser rei... e se eu falhar? — pela primeira vez
deixei minha insegurança aparecer em voz alta — Você não pode me deixar agora!
Ainda é cedo! Você... foi o meu pai!
— E você o meu filho — nunca vi um sorriso
tão tranquilo no rosto dele.
Ele não disse mais nada depois disso. Seus
olhos se fecharam e não voltaram a se abrir. Até aquele dia, eu nunca tinha me
sentido um órfão. Porque eu não era um. Gerard cuidou de mim; me
ensinou, me protegeu, me amou, morreu mostrando isso. Mesmo sabendo que eu não
era uma pessoa normal. Era isso que se devia esperar de um pai.
E é por isso que sua morte foi tão pesada
para mim. Foi a primeira vez que vi alguém que eu amava morrer. Não pude fazer
absolutamente nada para impedir e, tive de dizer adeus muito antes de estar
pronto. Não sei de onde tirei a força necessária para reunir a lenha para a
pira que usei para cremá-lo. Eu só conseguia pensar no quanto ele gostava da
nossa fazenda e quis torná-lo parte dela para sempre. Espalhei as cinzas pela
pequena plantação e no solo do carvalho que ficava atras da casa. Rezei por
Gerard, desejei que sua alma alcançasse o paraíso do qual tanto falava e me
despedi de tudo que conhecia.
Vesti a armadura peça por peça — meus olhos
não paravam de marejar, até desisti de enxugar as lágrimas —, coloquei o cordão
em meu pescoço e a espada na bainha. O mapa estava em minhas mãos e eu sabia
que não conseguira mais ficar naquela cabana. Eu ainda não era mais alto que
meu guardião, nunca cheguei a ser. Mas pronto ou não, tinha um mundo para
conhecer.
Nós já não tínhamos mais um cavalo naquela
época. Então tudo que estava entre mim e minha origem, era uma longa caminhada.
Peguei todos os mantimentos que pude colocar na bolsa e enchi três cantis de
água. A última coisa que fiz foi libertar os poucos animais que nós tínhamos no
celeiro e dar adeus a eles.
O percurso até a capital levou quase uma
semana a pé. Mas eu quase não me lembro dele. Apesar da paisagem desolada onde
quer que eu passasse, não aconteceu nada marcante e, nem mesmo voltei a
encontrar outras pessoas. Agora, do momento que cheguei no entorno da cidade jamais
vou me esquecer. Nunca tinha visto sequer um povoado, quem diria aquela
gigantesca aglomeração de casas e prédios feitos de concreto e madeira. Mas o
que realmente puxou a atenção de meus olhos foi o palácio no fundo, quase na
beirada da colina. Ele estava em ruinas e mesmo de longe pude ver as marcas de
onde o fogo havia o tocado. Mesmo assim, ainda era a maior construção do reino
e trazia uma imponência macabra.
Eu ainda não sabia o que iria fazer, mas
queria entrar no palácio de qualquer forma. Senti alguma coisa me chamando. Comecei
a caminhar pela estrada principal que levava direto aos portões da cidade. Me
sentia nervoso, como se a qualquer momento alguém pudesse me reconhecer. Fiz
questão de descer o visor do capacete e fechava os olhos toda vez que alguém se
aproximava.
Confesso que esperava outra coisa.
Imaginei que a capital seria mais viva, cheia
de alegria e cores, como nas histórias de Gerard. Mas tudo que encontrei foi
ruas vazias, algumas poucas pessoas andando apressadamente para algum lugar,
outras morrendo de fome e implorando por ajuda. As casas eram tão silenciosas
quanto o lado de fora, como se não houvesse vida — Larvênia estava morrendo aos
poucos, tentando se agarrar a seus últimos suspiros, mas sabendo que era
inútil.
Havia um único prédio bem conservado: a
catedral. Ela chegava a reluzir de tão limpa e brilhante. Também era de lá que
eu ouvia o maior movimento, como se todos que ainda tivessem alguma energia se
refugiassem lá dentro. Tive de ignorar minha curiosidade. Se já era arriscado
ser visto com tão poucas pessoas na rua, enfrentar uma multidão eliminaria meu
anonimato em um instante.
Enquanto eu andava comecei a fungar e sentir
meu nariz incomodado, quase ardendo. Percebi que um cheiro de podridão vinha de
todas as partes — doença misturada com fezes, lixo e morte —, senti vontade de
dar meia volta. Tudo na capital era o completo oposto da cabana tranquila e
aconchegante onde eu cresci. Cheguei a pensar que Gerard havia mentido sobre a
beleza do reino em suas histórias.
— Moço — uma garota se aproximou de mim, seus
olhos pareciam enormes, ou só estavam arregalados. — Tem um trocado? — ela
perguntou, pude ouvir o ronco em seu estomago e de longe vi um grupo de
crianças espichando as cabeças atras de um barril, fiquei com pena.
— É claro — entreguei a ela boa parte das
moedas que Gerard havia guardado todos esses anos, a garota pareceu surpresa,
mas saiu correndo com medo de que eu mudasse de ideia.
Engoli em seco. As pessoas de meu reino
estavam sofrendo e eu ainda não conseguia afastar a ideia de que tinha algo a
ver com isso. Precisei de toda minha concentração e foco para conseguir
continuar caminhando, faltava bem pouco.
Havia um grupo de guardas vigiando os
arredores do castelo, não sei se não queriam que alguém entrasse ou que alguma
coisa saísse das ruinas, mas não me importei em perguntar. Consegui
despistá-los jogando algumas pedras na outra direção e então entrei.
Ainda não sabia o que estava procurando.
Talvez algum vestígio de meus pais, da história de meu reino, qualquer coisa
que me desse uma pista do que fazer a seguir.
Andei por horas — ainda era de tarde quando
cheguei as ruínas, mas pelos buracos no teto e nas paredes pude ver que já
havia anoitecido — até finalmente chegar ao que parecia ser o salão do trono. Eu
sorri. Senti meu coração se encher de uma alegria que não conseguia explicar. Nem
precisava que alguém me dissesse. A reconheci no mesmo segundo naquele retrato
desbotado, assim como Gerard a descrevia — os longos cabelos loiros, os olhos
azuis cintilantes, o sorriso gentil e a pele clara. A rainha Amélia, minha mãe.
Eu me aproximei e toquei a pintura, senti
parte dela se esfarelando em meus dedos e então me afastei. Não tinha ideia de
como esse retrato sobrevivera tanto tempo — talvez sorte, ou talvez estivesse
me esperando — só sei que eu não queria estragá-lo. Tive certeza absoluta
de que era por isso que eu tinha ido até lá, apenas para ver o rosto dela. Eu
queria que tivesse mais que isso, que eu pudesse conversar com ela, contar como
cresci, perguntar sobre a vida dela. Mas eu tive de me contentar com aquela
pintura desbotada, mesmo que jamais fosse conhecê-la pessoalmente, pelo menos
agora eu tinha um rosto para imaginar quando pensava nela.
Não havia nenhum retrato do rei e, eu nem sei
se queria que tivesse. Nunca senti a mesma conexão quando Gerard me falava
dele. Então me dei por satisfeito e decidi ir embora. Eu ainda não tinha ideia
do meu próximo passo, mas duas coisas eram certas: as pessoas não iriam
simplesmente me seguir apenas por ter sangue real. E, apesar de até então eu
não ter descoberto algo que poderia me matar, também não queria enfrentar um
exército inteiro de camponeses furiosos para descobrir se eles tinham métodos
mais criativos.
A única ideia que passava a minha cabeça era
viajar para longe, reunir um grupo grande, recursos e voltar para mostrar ao
reino que queria ajudá-los. É uma pena que nunca tive a chance de concretizar
essa ideia. Quando eu saí das ruínas dei de cara com a mesma patrulha de antes.
Eles me encararam, cheios de curiosidade, e foram logo me cercando.
— O que estava fazendo lá dentro? — perguntou
um deles.
— Sabe que nossas ordens são apenas para
vigiar do lado de fora! — disso outro.
Eu engoli em seco, ainda era inocente,
assustado, nervoso. Não tinha adquirido a capacidade de mentir. Tentei inventar
uma justificativa, mas nada saiu de minha boca, fiquei de olhos fechados para
que eles não percebessem a cor através do visor do capacete, mas isso só os
deixou mais desconfiados.
— Responda! — um deles gritou,
furioso, talvez até assustado.
— Eu... — tentei dizer, mas ainda não sabia
como explicar.
Foi então que um deles puxou o meu elmo. Ele
caiu para trás, assustado e os outros recuaram.
— Só vim prestar minhas homenagens — eu
consegui dizer. — Não quero problemas. Já estou indo embora.
— Mas nem fodendo! — todos eles
puxaram suas espadas. — Sabemos quem você é!
— Príncipe Demônio! — disse outro deles.
— A culpa é sua! Toda sua! — gritou o
mais velho do grupo. — O rei era bom antes de você nascer! Corrompedor
de almas!
— Eu não tenho nada a ver com isso! —
neguei. — Quero ajudá-los! Quero salvar nosso reino!
Minha mão já estava na espada, não queria
lutar, mas também não deixaria que eles me pegassem.
— Temos que levá-lo para o bispo, agora!
— um dos soldados gritou e então a confusão começou.
Desviei das primeiras investidas, derrubei um
deles, bloqueei todos os golpes seguinte facilmente. Estranhei quando um deles correu, achei que
estava fugindo, mas só me dei conta que estava buscando reforços quando ele
começou a gritar.
— O Príncipe Demônio! O Príncipe Demônio!
O entorno das ruinas se tornou um verdadeiro
caos. Eu tentei lutar o máximo que pude. Mas de repente havia vinte, trinta,
cem pessoas querendo me derrubar.
Não tenho ideia de quando a espada de Gerard
saiu de minha mão. Nem de quando meus braços e pernas foram amarrados,
Eu tinha recebido dezenas de ferimentos no
processo, mas não me importei, já estavam se curando enquanto eles me
carregavam na direção da catedral.
— Como ousam trazer essa abominação em
solo sagrado?! — o bispo perguntou, seus olhos transmitiam desprezo puro.
Eu o odiei assim que o vi. Não por qualquer
coisa que pudesse ser feita contra mim. Mas por ele ser tão gordo que
mal conseguia se levantar daquela cadeira no fundo da igreja. Por ter uma mesa
com um banquete diante dele enquanto as pessoas morriam de fome. Nessa mesma
hora eu entendi quem é que ganhava mais com o medo das pessoas e que ele
poderia usar a fé delas para viver bem, sem jamais ninguém o questionar.
O bispo acrescentou:
— Levem-no daqui! Façam uma fogueira na
praça! Vou pegar minha bíblia e nós o mandaremos direto para o inferno!
— Ficou louco? — eu perguntei o mais alto que
pude. — Me queimar por qual razão?! As únicas vezes que fiz algo de mal a
alguém, foram para me proteger! Vocês não podem me condenar sem que eu
tenha cometido crimes! — as leis do reino ecoavam na minha cabeça, conseguia
claramente ouvir a voz de Gerard as sussurrando para mim.
Vi alguns do grupo que me arrastou até a
catedral se olharem confusos, pensativos, mas eles esperaram calmamente pela
reação do bispo.
— Não o escutem! As palavras do garoto são profanas,
amaldiçoadas! Elas vão corromper suas almas, carregá-los para o inferno!
Qualquer apelo que eu pudesse fazer a lógica
daqueles homens acabou naquele momento.
Um deles chutou a minha cabeça e os outros
começaram a me arrastar para fora da catedral. Ouvi o bispo gargalhar e desejei
poder matá-lo, nunca senti esse desejo antes, mas era só nisso que eu podia
pensar.
A multidão foi rápida na construção da pira.
Antes que eu me desse conta a praça já estava preparada para minha execução. Eu
entrei em pânico, não sabia se o fogo poderia me matar — Gerard já havia
queimado meus braços antes, eles tinham se curado, mas aquilo foi algo
superficial e rápido —, eu nunca tinha sido posto em uma fogueira e deixado lá
até virar cinzas.
— Por favor — implorei. — Não façam isso! Eu juro
que vou embora e que jamais voltarei! Vocês não precisam fazer isso! Eu não
tenho culpa de nada! — prometi, enquanto me amarravam.
— Cale a boca — foi tudo que ouvi.
As pessoas ao redor pareciam empolgadas,
felizes, desesperadas para que minha morte colocasse fim ao seu sofrimento. Eu
sentia pena delas, mas também raiva por estarem fazendo aquilo comigo.
O bispo foi carregado até a praça. Duvido que
ele teria conseguido andar os 100 metros que nos separavam da igreja. A
multidão abriu caminho, se calaram, esperando. Eu só conseguia pensar que iria
morrer assim, antes de poder cumprir minha missão, antes de deixar Gerard e
minha mãe orgulhosos, odiado pelas pessoas que eu deveria proteger.
— Está na hora de arder nas chamas do
inferno, criatura profana! — disse o bispo. enquanto jogava alo molhado
no meu rosto. — Retorne ao reino do seu pai, o diabo! Abandone esse mundo e
liberte nosso reino da fúria do senhor!
Eu comecei a gargalhar, acho que de
desespero. Meus olhos estavam cheios de lágrimas, mas também foi a primeira vez
que eles brilharam, tão intensamente que iluminaram toda a praça.
— É sua última chance de parar! — senti meu
interior queimando de ódio, sabendo que poderia destrui-los. Foi a primeira vez
que meus olhos brilharam por causa da raiva. Os camponeses se assustaram e
recuaram, todos, menos o bispo.
— Em nome do nosso deus todo poderoso, você
deve queimar!
Ele pegou a tocha mais próxima e acendeu a
pira com um sorriso gelado, satisfeito com toda sua encenação.
Eu conseguia me curar, isso era um fato, mas
nunca excluiu a dor. Quando as chamas começaram a devorar o meu corpo eu urrei
— mesmo não querendo dar esse gostinho a eles —, só conseguia sentir a armadura
se colar a minha pele derretendo tudo que encostava, nem sei mais se tinha
olhos naquele momento ou se eles tinham derretido, senti minha língua se
desprendendo da boca, minhas orelhas perderem a audição, minha carne
desaparecer pouco a pouco; mas também senti outra coisa desaparecer em
meio as chamas: o colar do Gerard. No mesmo momento em que ele foi consumido,
senti toda minha dor se transformar em ódio. Se fosse pra morrer, queira levar
todos eles junto comigo! Queria que sentissem cada segundo do meu sofrimento!
E foi o que aconteceu.
Eu gargalhei enquanto queimava, ou um ruído
parecido com risada. Chamas negras começaram a surgir de dentro de mim, consumindo
primeiro as chamas ao meu redor, o bispo, a praça e depois toda a capital. Tudo
se transformou em uma gigantes explosão que matou os culpados pelo meu
sofrimento, a pobre garotinha que eu havia ajudado pouco antes, as pessoas
famintas e doentes que sequer estavam envolvidas e tudo mais que estivesse nas
redondezas
Eu destruí a capital sem sequer mover um
dedo.
Foi assim que eu tive certeza de que eu era
de fato o Principe Demônio, ou algo perto disso. Passei a ter medo de mim e ter
certeza de que onde quer que eu fosse a morte iria junto. De um jeito ou de outro. fui o culpado pela
queda da Larvênia. Destruí o meu lar. Garanti que ele jamais pudesse ser
recuperado. Então não, eu não me considerava um príncipe, muito menos um rei.
Era somente um destruidor, assassino, um monstro.
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