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Herdeiros do Caos O Lamento do Príncipe capítulo 3

Isso aconteceu há quase 1000 anos.

 

Os eventos que levaram a queda da Larvênia começaram com meu pai — ou o homem que diziam ser o meu pai. O Rei Lenos Sinclair. Até pouco antes do meu nascimento, dizem que ele era um homem bom, justo e honrado. Eu não tenho ideia do motivo da mudança, mas sei que se tornou desconfiado, cruel e sedento por conquista. O reino já estava sofrendo com o que pareciam ser pragas — os rios estavam secando, as plantações murchando, os animais morrendo, minas desabando, doenças surgindo e se espalhando, e isso só para começar — e ao invés de tentar solucionar os problemas que eles já tinham, ele decidiu procurar mais.

Sei que não foi de um dia para o outro que isso tudo aconteceu. Mas de repente, Larvenia estava em guerra com todos os reinos vizinhos. Os soldados foram mandados para morrer em batalha e a população que ficou estava morrendo de fome. Mesmo com isso tudo, o rei simplesmente não se importava e ainda aumentou os impostos para poder financiar a matança. Não tenho ideia do que faz um homem mudar assim, mas sei que o reino estava quase entrando em colapso e, se não fosse minha mãe gastando o dinheiro da sua família para socorrer o povo, Larvênia teria caído muito antes. Eu nem me surpreendo com o rumo que as coisas tomaram. Acho até que os plebeus demoraram muito para reagir.

Foi pouco depois do meu batizado que a situação se tornou insustentável. Um bispo de muito longe tinha vindo para realizar a cerimônia, mas acho que ninguém contou a ele sobre meus olhos — meus lindos olhos vermelhos, que até hoje assustam as pessoas.

O homem enlouqueceu assim que me viu. Ele gritou, esperneou, fez o sinal dá cruz e declarou que tudo que o reino vinha sofrendo era minha culpa. Acho que as pessoas acreditaram. Não demorou mais que uma semana para os camponeses se organizarem. Um cochicho aqui, uma reunião as escondidas ali, umas armas surripiadas no meio da noite no arsenal e lá estavam eles prontos para a revolução.

A maioria dos soldados estava fora, lutando, morrendo. O palácio não tinha um contingente para se defender e, nem contava com o fato de haver traidores lá dentro para abrir os portões. Se fosse em outra época, talvez o Rei Lenos tivesse percebido o que estava para acontecer, mas naquela altura, ele já estava louco, delirando com a ganância e o poder ilusório da coroa.

Foi um massacre sem precedentes para o meu reino. Eu sequer posso culpar o povo, eles estavam desesperados, famintos, caindo aos pedaços. O homem que deveria liderá-los e protegê-los havia quebrado sua confiança e segundo o bispo, tinha um filho demônio a tiracolo. Meu único e verdadeiro pesar com o que aconteceu naquela noite foi a morte da minha mãe. Eu queria ter a conhecido, queria poder me lembrar de seus braços, sua voz, seu cheiro, seu sorriso. Mas tudo que tive foram histórias e um único retrato que vi durante minha vida.

O que soube sobre ela é que além de ser muito gentil, era esperta. Assim que percebeu o que estava acontecendo me entregou para o seu soldado mais leal. Ela sabia que os camponeses não ficariam satisfeitos até matar toda a realeza, mas quis me poupar a todo custo — me pergunto se eu teria morrido quando bebê, talvez tivesse ido para o mesmo lugar que ela, mas nunca vou saber,

Gerard era o nome dele, meu guardião, protetor, o homem que me criou e me ensinou tudo que sabia. Ele é o mais próximo que eu tive de um pai. É graças a ele que sei o que aconteceu nos momentos finais da realeza. Ele não queria abandonar minha mãe — toda vez que me contava a história seus olhos se enchiam de lágrimas —, mas não teve escolha. Os aldeões estavam prestes a derrubar as portas da biblioteca, se ele não entrasse na passagem secreta, jamais conseguiria fugir.

Como eles mataram meus pais eu não sei, nem quero saber. Não gosto de pensar nisso. Meu suposto pai até podia merecer, mas minha mãe, não. Até hoje não consigo perdoá-los por terem a tirado de mim tão cedo.

Sei que Gerard seguiu pelos corredores no interior do castelo até sair em um dos túneis de esgoto — latrinas enormes que passavam por debaixo do castelo, para ser mais preciso —, toda vez que ele contava torcia o nariz, dizia que o cheiro ficou em sua armadura por semanas. Depois de escapar da barbárie ele pegou o primeiro cavalo que encontrou e saiu de lá galopando o mais rápido que podia. Ele me contou que o percurso durou dois dias e duas noites inteiras — com pouquíssimas paradas para o cavalo poder beber água e recuperar o folego —, até conseguir chegar à cabana onde me criou.

Ele atravessou todo o bosque dos assombrados, onde os camponeses iam para morrer quando perdiam as esperanças, os pântanos repletos de crocodilos famintos, as campinas sem cor e finalmente conseguiu chegar a pequena cabana de inverno que pertencia a família da minha mãe. Um lugar em que os plebeus não pensariam em nos procurar.

As primeiras semanas foram simplesmente horríveis. Gerard não tinha ideia do que fazer com uma criança, ele era um guerreiro, afinal. E se não bastasse meu choro, ter de me limpar e arranjar comida para mim, ele ainda tinha de fazer isso tudo sem parar de prestar atenção nos arredores. O medo de termos sido seguidos o perseguiu por meses. Ele nunca me contou como as coisas melhoraram ou como nossa pequena plantação conseguia ir tão bem enquanto o reino continuava a morrer. Eu sei que tinha algo a ver com meus poderes, só não sei como ele pôde me controlar, porque mesmo agora isso é impossível para mim.

Não consigo achar que foi mera coincidência o Rei Lenos a mudar durante minha gestação, as pragas também começaram a surgir nessa época. E sabendo o que eu posso fazer quando estou com raiva, até consigo acreditar que aquele bispo estava certo sobre mim. Talvez eu fosse mesmo uma criança-demônio.

Cresci naquela fazenda por quase 14 anos sem nunca conhecer nada além dos seus arredores. O mais longe que já tinha ido era no riacho que ficava a dois quilômetros de distância, e isso sempre junto do meu guardião. Nesses anos ele sempre me contava histórias sobre o reino, sobre minha mãe, as vezes sobre o meu suposto pai. Todas as noites antes de me pôr para dormir contava algo fascinante, as vezes sobre si mesmo e suas aventuras antes de se tornar o protetor da minha mãe.

Durante esses anos Gerard me ensinou a ler: escrever, lutar, caçar, pescar, tudo o que eu fosse precisar para sobreviver e me tornar forte. Ele acreditava de todo coração que um dia eu iria conseguir retomar o trono, mesmo que tudo que tivéssemos fosse nós dois e nossa força de vontade.

Naquela época eu ainda não tinha descoberto o quanto eu era perigoso. Tirando o fato de os animais não gostarem quando eu me aproximava demais, eu não tinha motivos para achar que era diferente. Pior, como eu só conhecia o Gerard, ainda não sabia que ter cabelo branco e olhos vermelhos era algo fora do comum.

E durante esses 14 anos eu fui feliz, o máximo que poderia ser nessas circunstâncias. Contudo, sempre achei que faltava algo. Não poder me afastar da cabana, não conhecer mais nenhuma pessoa, viver sempre com a ideia de que pessoas que eu nem conhecia podiam me querer morto... eu me sentia preso, confuso e assustado. Eu queria explorar o mundo, queria saber se o que o Gerard me contava era verdade, porque teve uma época que eu cheguei a duvidar. Ele me falava do perigo de sair mundo a fora, que minha cabeça seria caçada e que as pessoas me atacariam assim que soubessem quem eu era.

Eu me sentia péssimo por duvidar da pessoa que me criou, da única pessoa que eu amei e sabia que me amava naquela época. Talvez possa ter sido parte da rebeldia da adolescência, mas não consegui mais aguentar as lições, os treinos, trabalhar na plantação, tudo isso me cansava. Eu cometi o grande erro de fugir. Mereci tudo que aconteceu depois disso.

Gerard tinha saído para cavalgar e checar os arredores, como fazia todas as manhãs antes de começarmos nosso dia. Eu sempre estava dormindo nessa hora — quase sempre ele saía antes do sol nascer —, mas naquele dia eu sequer tinha fechado os olhos. Passei horas escondido embaixo do cobertor esperando minha chance de escapar. Assim que ouvi o relinchar do cavalo coloquei minhas botas e sai correndo pela porta.

Se eu sabia para onde ir? Não tinha ideia. Nós estávamos tão longe da capital que eu sequer conseguia ver o palácio no horizonte. Só que, nas histórias, Gerard sempre falava do Norte, das colinas que cercavam a capital e do enorme rio que cruzava o meio da cidade. Então eu usei minha pouca noção geográfica e saí sem sequer ter um plano do que fazer quando chegasse. Corri, sempre olhando para trás com medo dele sentir minha falta. Eu só queria saber ver rostos novos, conhecer o reino onde nasci, ver se ele era como nas histórias que eu ouvia. Não imaginei que eu sequer chegaria à capital.  

Acho que corri uns 10 quilômetros através do solo desolado antes de me topar com aqueles homens: quatro soldados vestindo armaduras parecidas com a do Gerard, acho que deviam estar caçando ou patrulhando, sinceramente não sei.

Eu tremi, ainda me lembro bem da sensação.

Meu coração batia rápido, eles ainda não tinham me visto. Havia uma pedra grande onde eu poderia me esconder, mas não foi isso que eu fiz. Fui ingênuo, idiota e se não fossem meus poderes... teria sido o meu fim.

Ei! Vocês estão vindo da capital? — eu corri até eles, mesmo com o nervosismo, não achei que fossem me reconhecer.

Eles não responderam. Me olharam de cima a baixo, cochicharam algo, mas eu não percebi o que estava prestes a acontecer, achei mesmo que havia alguma chance de serem gentis.

— Mas quem diabos é esse? — um deles perguntou.

— O cabelo dele é mais branco que os pelos do saco do meu avô — comentou outro, antes de cuspir no chão.

— Os olhos dele — o mais baixo apontou para mim. — São vermelhos... ele deve estar doente! Não o deixem chegar perto!

— Vocês são todos burros? — perguntou aquele que parecia ser o líder. — Nunca ouviram as histórias? — na mesma hora eu entendi que estava com problemas, eles sabiam quem eu era, mas não consegui correr, minhas pernas não me obedeciam. — Ele só pode ser o Principe Demônio, o que destruiu nosso reino — engoli em seco aquelas palavras. — É muita sorte termos chegado aqui nesse exato momento. Seremos os salvadores da Larvenia!

— Você acredita no papo do bispo? — perguntou o soldado que tinha falado do meu cabelo. — Aquilo são histórias para o povo poder culpar alguém. Meus pais viviam dizendo que o Príncipe Demônio viria me pegar se eu não me comportasse. Mas olha para ele, é só uma merdinha qualquer.

Não gostei do que ele disse. Lembro que senti vontade de esmurrá-lo, mas estava criando coragem para fugir, torcendo para alcançar Gerard antes deles me pegarem.

— Aí, garoto — o líder começou a caminhar na minha direção e eu a andar para trás. — Qual o seu nome? De onde veio? — apesar da voz gentil, ele tinha puxado a espada.

— De... lugar nenhum. E já estou voltando para lá — não sei de onde saiu a coragem para dizer isso.

Tudo que eu me lembrava era das lições com Gerard, sobre não demonstrar medo aos oponentes, nem mesmo diante da morte certa.

— Olha só, o pirralho é engraçadinho — comentou o mais baixo.

— O que acha de darmos uma lição nele? — outro deles sugere, o sorriso dele transbordava crueldade.

— Só não vamos matá-lo — disse o líder. — Talvez o bispo possa fazer algum exorcismo para nos livrarmos das pragas. Vamos ser condecorados como heróis! Todos vão gritar nossos nomes enquanto o reino durar! — nos olhos dele eu só consegui ver ambição, eu não passava de um troféu.

Assim que um deles começou a correr eu fiz o mesmo. Com medo ou não, ainda não queria morrer, não tendo vivido e conhecido tão pouco. Nos segundos que levaram até um deles me alcançar eu rezei para o deus de que Gerard tanto falava, implorei por misericórdia, jurei nunca mais desobedecer ao meu guardião, só queria sair dali vivo.

Eu estava tentando subir a colina para voltar na direção da fazenda quando o mais alto dos soldados tentou me agarrar. Eu sabia que não ia conseguir fugir correndo, então a única saída era lutar o quanto podia. Me abaixei bem na hora que os braços dele iam fechar o laço em volta do meu corpo, depois disso me joguei com tudo em suas pernas e nós dois rolamos colina abaixo. Nós acabamos atingindo os outros três na descida e tudo virou um caos de gritos, rangidos metálicos e ossos se quebrando.

Eu consegui me levantar primeiro, os soldados tinham sido pegos de surpresa e ainda estavam confusos — além disso, eles eram mais pesados por causa da armadura —, a vantagem era minha, mesmo sentindo algo fora do lugar na minha perna direita. Voltei a subir a colina, dessa vez com esperança de escapar, que tolo eu fui. Senti algo me perfurar pelas costas com tanta força que me jogou no chão. Eu me lembro de gritar, nunca tinha sentido tanta dor; na verdade, nunca tinha me machucado até aquele momento. Ver meu sangue escorrendo me apavorou, sentir a flecha presa dentro do meu corpo, atravessando meus órgãos, me deixou em um estado de pânico onde nem conseguia mais pensar.

Tudo que eu sabia é que iria morrer e que não tinha mais ninguém para culpar. Meu único pesar era não poder me desculpar com o Gerard.

Os soldados caminharam na minha direção, não tinham pressa. Seus olhares eram de raiva, ódio, desprezo. Eu simplesmente não conseguia entender como desconhecidos conseguiam me olhar assim, como se eu fosse culpado por tudo de ruim em suas vidas. Eu consegui me levantar, nem sei como. Ia tentar correr, mas outra flecha me acertou no ombro e eu voei longe, só parei quando acertei uma rocha, a flecha cravada nas minhas costas chegou a ser empurrada para fora do meu corpo com a força do impacto. Eu cuspi sangue e me senti fraco, cansado, vazio.

— Tem sorte de queremos te levar vivo — disse o líder, mas eu não imaginava como conseguiria sair daquilo com vida, meus olhos já estavam ficando pesados. — Senão. eu teria atravessado uma flecha bem nesses seus olhos de demônio!

Ele atirou mais uma flecha, não sei para que, eu não iria me mover de qualquer forma. A terceira acertou meu pulso direito e o prendeu no chão, não consegui gritar, não tinha forças.

— O que... — com muito custo consegui dizer, meus olhos estavam cheios de lágrimas, mas meu maior sentimento naquele momento era indignação. — O que foi que eu te fiz?!

Minha voz ecoou pela colina, algo mudou em mim naquele momento, não sei dizer bem o quê.

— Mas que pergunta idiota! — o líder debochou. — Você destruiu nosso reino, nossa casa! As pessoas morrem de fome, de doença, não há dinheiro, não há ajuda! Estamos fodidos por causa das guerras que seu pai arranjou! Estou cansado de perder pessoas que amo sem poder fazer nada!

Eu queria odiá-lo pelo que fez comigo, mas não consegui. Me senti culpado, acreditei nele, acho que ainda acredito.

Ele continuou:

— Vou lhe entregar ao bispo e espero que ele te faça sofrer tanto quanto nós sofremos, antes de te mandar para o inferno!

Eu já nem achava que chegaria tão longe com os ferimentos que tinha recebido. E ele ainda começou a me chutar com toda a força que podia — um homem com o dobro do meu tamanho. Qualquer parte do meu corpo que não estava doendo antes disso passou a competir com as perfurações das flechas. Eu nunca tinha visto tanto sangue, nem mesmo quando Gerard matava algum animal para nós comermos.

Em algum momento senti mais pares de pés se juntando ao do líder. Acho que eles acabaram desistindo da ideia de me levar vivo, ou foram tomados pela fúria, realmente não sei. Meus olhos já estavam tão inchados que tudo que eu conseguia ver eram borrões. Minha orelha zumbia, minha cabeça latejava, não tinha como pensar. Só queria que tudo acabasse logo.

Depois de ver como aquele homem me odiava, até achei que merecia o que estavam fazendo comigo. Acreditei que minha morte salvaria o reino e cheguei a sorrir quando perdi a consciência. Não sei por quanto tempo apaguei, mas quando meus olhos abriram de novo vi um dos soldados caídos no chão, morto com uma flecha cravada entre seus olhos. O mais baixo não estava muito longe de mim, ele tentava tapar o buraco em sua garganta, mas sua pele estava perdendo a cor e sua respiração falhando.

Demorei para conseguir girar a cabeça e ver Gerard enfrentando os outros dois. Ele tinha vindo me salvar, mesmo depois de eu tentar fugir. Eu teria sorrido. se conseguisse. Não consegui acompanhar os movimentos, ele lutava com muito mais vontade e urgência do que em nossos treinamentos. Eu só conseguia ver as espadas se cruzando, um golpe ou outro acertando alguém, mas não descobri o que derrubou o primeiro soldado — o que tinha comentado do meu cabelo —, só sei que ele desabou no chão e não se levantou de novo.

Gerard olhou na minha direção e sorriu, como se quisesse dizer que ia ficar tudo bem. O líder tentou aproveitar esse momento para acertá-lo, mas foi o erro dele, meu guardião desviou e cravou sua espada em sua nuca e a puxou logo em seguida. Me espantei com o quão fácil ele podia matar alguém. Mesmo sendo as pessoas que tinham me ferido, era difícil imaginar o homem calmo e gentil que me criou tirar a vida de uma pessoa a sangue frio e sem demonstrar qualquer sinal de remorso. Talvez isso tivesse a ver com o código de cavaleiro que ele vivia falando — algo que só fui entender anos mais tarde—, nós não fazíamos o que gostávamos, mas sim o que precisávamos fazer para proteger aqueles que eram importantes.

— Dymas... — ele se aproximou de mim com os olhos arregalados, tanto seu rosto como seu torso apresentavam cortes e ele cambaleou até chegar perto de mim.

Por alguns instantes ele apenas parou na minha frente com um olhar pesaroso, de quem havia falhado em sua missão. Foi assim que eu soube que deveria ter morrido, que aqueles ferimentos estavam além do que qualquer humano poderia suportar.

Gerard segurou minha mão dizendo que ia ficar tudo bem, quase como se estivesse se despedindo de mim. Ele chorou. Eu chorei. E de repente, ele saltou para trás assustado. Eu demorei para entender. Precisei ver a primeira flecha cair do meu corpo para perceber que os ferimentos estavam se fechando. A dor começou a diminuir e foi como se nada disso tivesse acontecido.

— O que está acontecendo comigo, Gê? — eu perguntei desesperado, tão assustado quanto ele. — O que tem de errado comigo?

— Eu não sei — ele tentou parecer calmo, mas me lembro do espanto escrito em seu rosto. — Realmente não sei, garoto.

— Aqueles soldados... disseram que a culpa é minha! — eu contei, não sei se minha voz saiu direito naquela hora, eu chorei tanto que senti meu nariz escorrendo e os soluços tomarem conta de mim. — Eles disseram que fui eu que causei tudo de ruim! É verdade?!

Meu coração se partiu naquela hora. Gerard estava com medo de mim. E isso só confirmou tudo de ruim que eu estava sentindo.

— Dymas — ele começou, mas parou, como se estivesse preparando cada palavra que ia dizer a seguir. — Você não tem culpa de ter nascido. Nem do que aconteceu com nosso reino. Você só pode ser culpado por suas ações. Você já fez algo ruim?

Gerard voltou a se aproximar e olhava em meus olhos, o medo parecia ter ido embora e ele tinha a mesma expressão de quando queria me ensinar alguma coisa.

— Eu fugi. Mesmo sabendo que era errado, que seria perigoso — encolhi os ombros, até então tinha sido a primeira vez que contrariei as instruções do meu guardião. — Não devia ter feito isso.

— Não, não devia — apesar da preocupação, ele sorriu. — Mas isso não te torna uma pessoa ruim. Querer viver nesse mundo, fazer parte dele, não é errado — ele estendeu a mão para mim e eu a aceitei. — Só não chegou o momento certo, ainda.

— E quando vou estar pronto? — eu perguntei, enquanto olhava para os soldados mortos, triste com tudo que eles me fizeram e por eles terem morrido.

— Quando você for mais alto que eu — aquela resposta me deixou contrariado, Gerard tinha quase dois metros de altura e eu mal tinha um metro e meio na época.

— Gê... o que eu sou?

— O meu príncipe. O futuro rei da Larvenia — ele respondeu na mesma hora. — Isso é tudo que me importa.

Eu não disse mais nada na volta para casa, ele também não. Nunca mais tentei nada parecido. Naquela manhã eu não só descobri que a as histórias eram verdade, como também percebi que tinha algo diferente em mim — algo que ia muito além da cor dos cabelos e olhos. Depois desse dia comecei a ter pesadelos todas as noites por quase um ano. Os soldados sempre surgiam em meus sonhos, me culpando, acusando, querendo me matar.

Eu conversei com Gerard sobre isso, ele me disse que enquanto tivesse medo eles continuariam a me assombrar e que a única forma de me ver livre seria enfrentá-los. Foi o que eu comecei a fazer. De início eu só rebatia as acusações, me defendia, me mantinha de pé diante deles sem hesitação. Mas depois, comecei a enfrentá-los, partir para cima, destruí-los. Comecei a gostar disso e até mesmo ia dormir ansioso para vê-los. Os pesadelos acabaram sumindo.

Talvez tenha a ver com minha mudança de atitude, ou com os treinamentos exaustivos que eu vinha tendo — ao invés de se assustar com minha habilidade regenerativa, Gerard quis testá-la — então quando eu ia me deitar estava tão exausto que simplesmente desabava.

Os anos se passaram, eu cresci mais, fiquei mais forte, mais esperto, mais corajoso. Era quase um homem, como Gerard vivia dizendo. Meu medo de partir para o mundo lá fora foi substituído por uma necessidade de desbravá-lo, de tomá-lo em minhas mãos. Meus últimos dias na cabana foram repletos de discussões com meu guardião a respeito disso. Eu queria ir embora; tomar o reino de volta, já ele, só queria me proteger, achava que eu nunca estaria pronto para a missão.

Não sei se ele tinha medo do que eu poderia fazer com os camponeses — que tomaram o reino — ou o que eles poderiam fazer comigo, mas a cada ano que passava Gerard ficava mais cauteloso, preocupado. Quando ele adoeceu, alguma coisa mudou.

Até hoje não sei ao certo que doença o afligiu. Só sei que ele passou a ter febres altas; quase não conseguia sair da cama, vivia tossindo sangue, suas mãos tremiam tanto que ele nem conseguia comer sozinho. Toda minha vontade de partir foi substituída pelo desejo de que ele ficasse bem. Cheguei a rezar barganhando sobre isso, mas de nada adiantou.

— Sua mãe ficaria tão orgulhosa do homem que você se tornou... — nunca esquecerei nossa última conversa. — Eu queria tanto poder te ver subir ao trono... — seus olhos mal ficavam abertos. — Temo que não terei essa chance...

— Pare com isso, seu velho idiota! — eu não queria chorar, queria ser forte para ele, segurar sua mão até o fim para que partisse em paz, mas não consegui controlar, quando a primeira lágrima veio, trouxe junto uma inundação. — Você vai ficar bem! Só precisa descansar!

É claro que era mentira, até para mim mesmo. Já haviam se passado três semanas e ele só fazia piorar.

— Um homem deve saber a sua hora de partir — ele conseguiu sorrir, parecia tranquilo, conformado. — Ele também deve saber a hora de lutar pelo que é certo.

Eu franzi o cenho sem entender. Gerard apontou para sua armadura — que sempre ficava guardada no canto da sala, pronta para ser vestida se preciso —, depois para sua espada em cima da mesa e então tirou o cordão do pescoço, um pingente de prata, lindo, que sempre me fascinou: uma espada com uma serpente enrolada nela.

— Leve com você. Espero que possam ajudar em sua jornada — sua mão segurou a minha com toda a força que ele tinha. — Espero que minha armadura possa te proteger e que minha espada derrote os inimigos em seu caminho. Sei que você está destinado a grandeza, Dymas.

— Não diga isso! — pedi, enquanto sentia o calor se esvaindo do corpo dele. — Não quero ir a lugar algum sem você!

— Na minha bolsa tem um mapa — ele me ignorou. — A capital está marcada nele, não deve ser difícil encontrá-la.

Eu sacudi a cabeça em negação, não queria que ele me apoiasse nisso, não desse jeito. Preferiria ter mais vinte anos discutindo se era ou não uma boa ideia, desde que ele continuasse vivo.

— Você precisa mostrar a eles que estão errados sobre você — ele acrescentou. — É o seu dever. Precisa restaurar o reino, protegê-lo...

— Eu não sei por onde começar! Preciso de você! — implorei. — Não posso ser rei... e se eu falhar? — pela primeira vez deixei minha insegurança aparecer em voz alta — Você não pode me deixar agora! Ainda é cedo! Você... foi o meu pai!

— E você o meu filho — nunca vi um sorriso tão tranquilo no rosto dele.

Ele não disse mais nada depois disso. Seus olhos se fecharam e não voltaram a se abrir. Até aquele dia, eu nunca tinha me sentido um órfão. Porque eu não era um. Gerard cuidou de mim; me ensinou, me protegeu, me amou, morreu mostrando isso. Mesmo sabendo que eu não era uma pessoa normal. Era isso que se devia esperar de um pai.

E é por isso que sua morte foi tão pesada para mim. Foi a primeira vez que vi alguém que eu amava morrer. Não pude fazer absolutamente nada para impedir e, tive de dizer adeus muito antes de estar pronto. Não sei de onde tirei a força necessária para reunir a lenha para a pira que usei para cremá-lo. Eu só conseguia pensar no quanto ele gostava da nossa fazenda e quis torná-lo parte dela para sempre. Espalhei as cinzas pela pequena plantação e no solo do carvalho que ficava atras da casa. Rezei por Gerard, desejei que sua alma alcançasse o paraíso do qual tanto falava e me despedi de tudo que conhecia.

Vesti a armadura peça por peça — meus olhos não paravam de marejar, até desisti de enxugar as lágrimas —, coloquei o cordão em meu pescoço e a espada na bainha. O mapa estava em minhas mãos e eu sabia que não conseguira mais ficar naquela cabana. Eu ainda não era mais alto que meu guardião, nunca cheguei a ser. Mas pronto ou não, tinha um mundo para conhecer.

Nós já não tínhamos mais um cavalo naquela época. Então tudo que estava entre mim e minha origem, era uma longa caminhada. Peguei todos os mantimentos que pude colocar na bolsa e enchi três cantis de água. A última coisa que fiz foi libertar os poucos animais que nós tínhamos no celeiro e dar adeus a eles.

O percurso até a capital levou quase uma semana a pé. Mas eu quase não me lembro dele. Apesar da paisagem desolada onde quer que eu passasse, não aconteceu nada marcante e, nem mesmo voltei a encontrar outras pessoas. Agora, do momento que cheguei no entorno da cidade jamais vou me esquecer. Nunca tinha visto sequer um povoado, quem diria aquela gigantesca aglomeração de casas e prédios feitos de concreto e madeira. Mas o que realmente puxou a atenção de meus olhos foi o palácio no fundo, quase na beirada da colina. Ele estava em ruinas e mesmo de longe pude ver as marcas de onde o fogo havia o tocado. Mesmo assim, ainda era a maior construção do reino e trazia uma imponência macabra.

Eu ainda não sabia o que iria fazer, mas queria entrar no palácio de qualquer forma. Senti alguma coisa me chamando. Comecei a caminhar pela estrada principal que levava direto aos portões da cidade. Me sentia nervoso, como se a qualquer momento alguém pudesse me reconhecer. Fiz questão de descer o visor do capacete e fechava os olhos toda vez que alguém se aproximava.

Confesso que esperava outra coisa.

Imaginei que a capital seria mais viva, cheia de alegria e cores, como nas histórias de Gerard. Mas tudo que encontrei foi ruas vazias, algumas poucas pessoas andando apressadamente para algum lugar, outras morrendo de fome e implorando por ajuda. As casas eram tão silenciosas quanto o lado de fora, como se não houvesse vida — Larvênia estava morrendo aos poucos, tentando se agarrar a seus últimos suspiros, mas sabendo que era inútil.

Havia um único prédio bem conservado: a catedral. Ela chegava a reluzir de tão limpa e brilhante. Também era de lá que eu ouvia o maior movimento, como se todos que ainda tivessem alguma energia se refugiassem lá dentro. Tive de ignorar minha curiosidade. Se já era arriscado ser visto com tão poucas pessoas na rua, enfrentar uma multidão eliminaria meu anonimato em um instante.

Enquanto eu andava comecei a fungar e sentir meu nariz incomodado, quase ardendo. Percebi que um cheiro de podridão vinha de todas as partes — doença misturada com fezes, lixo e morte —, senti vontade de dar meia volta. Tudo na capital era o completo oposto da cabana tranquila e aconchegante onde eu cresci. Cheguei a pensar que Gerard havia mentido sobre a beleza do reino em suas histórias.

— Moço — uma garota se aproximou de mim, seus olhos pareciam enormes, ou só estavam arregalados. — Tem um trocado? — ela perguntou, pude ouvir o ronco em seu estomago e de longe vi um grupo de crianças espichando as cabeças atras de um barril, fiquei com pena.

— É claro — entreguei a ela boa parte das moedas que Gerard havia guardado todos esses anos, a garota pareceu surpresa, mas saiu correndo com medo de que eu mudasse de ideia.

Engoli em seco. As pessoas de meu reino estavam sofrendo e eu ainda não conseguia afastar a ideia de que tinha algo a ver com isso. Precisei de toda minha concentração e foco para conseguir continuar caminhando, faltava bem pouco.

Havia um grupo de guardas vigiando os arredores do castelo, não sei se não queriam que alguém entrasse ou que alguma coisa saísse das ruinas, mas não me importei em perguntar. Consegui despistá-los jogando algumas pedras na outra direção e então entrei.

Ainda não sabia o que estava procurando. Talvez algum vestígio de meus pais, da história de meu reino, qualquer coisa que me desse uma pista do que fazer a seguir.

Andei por horas — ainda era de tarde quando cheguei as ruínas, mas pelos buracos no teto e nas paredes pude ver que já havia anoitecido — até finalmente chegar ao que parecia ser o salão do trono. Eu sorri. Senti meu coração se encher de uma alegria que não conseguia explicar. Nem precisava que alguém me dissesse. A reconheci no mesmo segundo naquele retrato desbotado, assim como Gerard a descrevia — os longos cabelos loiros, os olhos azuis cintilantes, o sorriso gentil e a pele clara. A rainha Amélia, minha mãe.

Eu me aproximei e toquei a pintura, senti parte dela se esfarelando em meus dedos e então me afastei. Não tinha ideia de como esse retrato sobrevivera tanto tempo — talvez sorte, ou talvez estivesse me esperando — só sei que eu não queria estragá-lo. Tive certeza absoluta de que era por isso que eu tinha ido até lá, apenas para ver o rosto dela. Eu queria que tivesse mais que isso, que eu pudesse conversar com ela, contar como cresci, perguntar sobre a vida dela. Mas eu tive de me contentar com aquela pintura desbotada, mesmo que jamais fosse conhecê-la pessoalmente, pelo menos agora eu tinha um rosto para imaginar quando pensava nela.

Não havia nenhum retrato do rei e, eu nem sei se queria que tivesse. Nunca senti a mesma conexão quando Gerard me falava dele. Então me dei por satisfeito e decidi ir embora. Eu ainda não tinha ideia do meu próximo passo, mas duas coisas eram certas: as pessoas não iriam simplesmente me seguir apenas por ter sangue real. E, apesar de até então eu não ter descoberto algo que poderia me matar, também não queria enfrentar um exército inteiro de camponeses furiosos para descobrir se eles tinham métodos mais criativos.

A única ideia que passava a minha cabeça era viajar para longe, reunir um grupo grande, recursos e voltar para mostrar ao reino que queria ajudá-los. É uma pena que nunca tive a chance de concretizar essa ideia. Quando eu saí das ruínas dei de cara com a mesma patrulha de antes. Eles me encararam, cheios de curiosidade, e foram logo me cercando.

— O que estava fazendo lá dentro? — perguntou um deles.

— Sabe que nossas ordens são apenas para vigiar do lado de fora! — disso outro.

Eu engoli em seco, ainda era inocente, assustado, nervoso. Não tinha adquirido a capacidade de mentir. Tentei inventar uma justificativa, mas nada saiu de minha boca, fiquei de olhos fechados para que eles não percebessem a cor através do visor do capacete, mas isso só os deixou mais desconfiados.

Responda! — um deles gritou, furioso, talvez até assustado.

— Eu... — tentei dizer, mas ainda não sabia como explicar.

Foi então que um deles puxou o meu elmo. Ele caiu para trás, assustado e os outros recuaram.

— Só vim prestar minhas homenagens — eu consegui dizer. — Não quero problemas. Já estou indo embora.

— Mas nem fodendo! — todos eles puxaram suas espadas. — Sabemos quem você é!

— Príncipe Demônio! — disse outro deles.

— A culpa é sua! Toda sua! — gritou o mais velho do grupo. — O rei era bom antes de você nascer! Corrompedor de almas!

— Eu não tenho nada a ver com isso! — neguei. — Quero ajudá-los! Quero salvar nosso reino!

Minha mão já estava na espada, não queria lutar, mas também não deixaria que eles me pegassem.

— Temos que levá-lo para o bispo, agora! — um dos soldados gritou e então a confusão começou.

Desviei das primeiras investidas, derrubei um deles, bloqueei todos os golpes seguinte facilmente.  Estranhei quando um deles correu, achei que estava fugindo, mas só me dei conta que estava buscando reforços quando ele começou a gritar.

— O Príncipe Demônio! O Príncipe Demônio!

O entorno das ruinas se tornou um verdadeiro caos. Eu tentei lutar o máximo que pude. Mas de repente havia vinte, trinta, cem pessoas querendo me derrubar.

Não tenho ideia de quando a espada de Gerard saiu de minha mão. Nem de quando meus braços e pernas foram amarrados,

Eu tinha recebido dezenas de ferimentos no processo, mas não me importei, já estavam se curando enquanto eles me carregavam na direção da catedral.

— Como ousam trazer essa abominação em solo sagrado?! — o bispo perguntou, seus olhos transmitiam desprezo puro.

Eu o odiei assim que o vi. Não por qualquer coisa que pudesse ser feita contra mim. Mas por ele ser tão gordo que mal conseguia se levantar daquela cadeira no fundo da igreja. Por ter uma mesa com um banquete diante dele enquanto as pessoas morriam de fome. Nessa mesma hora eu entendi quem é que ganhava mais com o medo das pessoas e que ele poderia usar a fé delas para viver bem, sem jamais ninguém o questionar.

O bispo acrescentou:

— Levem-no daqui! Façam uma fogueira na praça! Vou pegar minha bíblia e nós o mandaremos direto para o inferno!

— Ficou louco? — eu perguntei o mais alto que pude. — Me queimar por qual razão?! As únicas vezes que fiz algo de mal a alguém, foram para me proteger! Vocês não podem me condenar sem que eu tenha cometido crimes! — as leis do reino ecoavam na minha cabeça, conseguia claramente ouvir a voz de Gerard as sussurrando para mim.

Vi alguns do grupo que me arrastou até a catedral se olharem confusos, pensativos, mas eles esperaram calmamente pela reação do bispo.

— Não o escutem! As palavras do garoto são profanas, amaldiçoadas! Elas vão corromper suas almas, carregá-los para o inferno!

Qualquer apelo que eu pudesse fazer a lógica daqueles homens acabou naquele momento.

Um deles chutou a minha cabeça e os outros começaram a me arrastar para fora da catedral. Ouvi o bispo gargalhar e desejei poder matá-lo, nunca senti esse desejo antes, mas era só nisso que eu podia pensar.

A multidão foi rápida na construção da pira. Antes que eu me desse conta a praça já estava preparada para minha execução. Eu entrei em pânico, não sabia se o fogo poderia me matar — Gerard já havia queimado meus braços antes, eles tinham se curado, mas aquilo foi algo superficial e rápido —, eu nunca tinha sido posto em uma fogueira e deixado lá até virar cinzas.

— Por favor — implorei. — Não façam isso! Eu juro que vou embora e que jamais voltarei! Vocês não precisam fazer isso! Eu não tenho culpa de nada! — prometi, enquanto me amarravam.

— Cale a boca — foi tudo que ouvi.

As pessoas ao redor pareciam empolgadas, felizes, desesperadas para que minha morte colocasse fim ao seu sofrimento. Eu sentia pena delas, mas também raiva por estarem fazendo aquilo comigo.

O bispo foi carregado até a praça. Duvido que ele teria conseguido andar os 100 metros que nos separavam da igreja. A multidão abriu caminho, se calaram, esperando. Eu só conseguia pensar que iria morrer assim, antes de poder cumprir minha missão, antes de deixar Gerard e minha mãe orgulhosos, odiado pelas pessoas que eu deveria proteger.

— Está na hora de arder nas chamas do inferno, criatura profana! — disse o bispo. enquanto jogava alo molhado no meu rosto. — Retorne ao reino do seu pai, o diabo! Abandone esse mundo e liberte nosso reino da fúria do senhor!

Eu comecei a gargalhar, acho que de desespero. Meus olhos estavam cheios de lágrimas, mas também foi a primeira vez que eles brilharam, tão intensamente que iluminaram toda a praça.

— É sua última chance de parar! — senti meu interior queimando de ódio, sabendo que poderia destrui-los. Foi a primeira vez que meus olhos brilharam por causa da raiva. Os camponeses se assustaram e recuaram, todos, menos o bispo.

— Em nome do nosso deus todo poderoso, você deve queimar! 

Ele pegou a tocha mais próxima e acendeu a pira com um sorriso gelado, satisfeito com toda sua encenação.

Eu conseguia me curar, isso era um fato, mas nunca excluiu a dor. Quando as chamas começaram a devorar o meu corpo eu urrei — mesmo não querendo dar esse gostinho a eles —, só conseguia sentir a armadura se colar a minha pele derretendo tudo que encostava, nem sei mais se tinha olhos naquele momento ou se eles tinham derretido, senti minha língua se desprendendo da boca, minhas orelhas perderem a audição, minha carne desaparecer pouco a pouco; mas também senti outra coisa desaparecer em meio as chamas: o colar do Gerard. No mesmo momento em que ele foi consumido, senti toda minha dor se transformar em ódio. Se fosse pra morrer, queira levar todos eles junto comigo! Queria que sentissem cada segundo do meu sofrimento!

E foi o que aconteceu.

Eu gargalhei enquanto queimava, ou um ruído parecido com risada. Chamas negras começaram a surgir de dentro de mim, consumindo primeiro as chamas ao meu redor, o bispo, a praça e depois toda a capital. Tudo se transformou em uma gigantes explosão que matou os culpados pelo meu sofrimento, a pobre garotinha que eu havia ajudado pouco antes, as pessoas famintas e doentes que sequer estavam envolvidas e tudo mais que estivesse nas redondezas

Eu destruí a capital sem sequer mover um dedo.

Foi assim que eu tive certeza de que eu era de fato o Principe Demônio, ou algo perto disso. Passei a ter medo de mim e ter certeza de que onde quer que eu fosse a morte iria junto.  De um jeito ou de outro. fui o culpado pela queda da Larvênia. Destruí o meu lar. Garanti que ele jamais pudesse ser recuperado. Então não, eu não me considerava um príncipe, muito menos um rei. Era somente um destruidor, assassino, um monstro.

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